Colunas Jorge Nunes

Luz na escuridão

Na manhã de sexta-feira, postei no Facebook uma daquelas frases de filosofia de botequim que volta e meia me lembro de ter ouvido ou falado nas intermináveis madrugadas de boemia na juventude em Copacabana.

“A grande questão é saber se as qualidades da humanidade serão suficientes para superar os seus defeitos”, escrevi. Filosofias de botequim e provérbios populares geralmente não merecem muitas elaborações e encerram pequenas verdades relativas em si, mas os acontecimentos do restante da sexta-feira me fizeram voltar àquela frase, ao final do dia, e percebi o tanto que ela tem de verdade.

Enquanto eu me preparava para sair e assistir à estreia do balé ‘O Lago dos Cisnes’, no belíssimo teatro Kravis Center, em West Palm Beach, caiu como um estilhaço de bomba no meu celular a informação de que Paris estava sob um ataque terrorista. Em vários pontos da cidade, bares, restaurantes e casas de espetáculo, pessoas eram executadas a tiros por outras pessoas que agiam em nome da convicção lunática de que a dor, o horror e a morte de inocentes podem servir como argumento para a supremacia dos que acreditam ser a sua verdade.

O método não é novo. Em 24 de agosto de 1572, a mesma Paris passou por uma noite de terror ainda pior, quando uma onda avassaladora de ódio levou a morte para milhares de huguenotes, cidadãos que pertenciam a uma certa denominação protestante francesa. O episódio ficou conhecido na história como o Massacre da Noite de São Bartolomeu, e durante toda a madrugada líderes e simpatizantes dos huguenotes foram assassinados nas ruas de Paris e em suas casas, onde um grande ‘H’ pintado nas portas indicava o alvo a ser eliminado. Logo a perseguição espalhou-se por toda a França, e no final dezenas de milhares de pessoas foram massacradas pelos que usam o horror e a morte como argumento para provar a supremacia do que acreditam ser a sua verdade, da mesma forma que os terroristas de sexta-feira.

Com o espírito devastado pelas notícias, seguimos assim mesmo para o Kravis Center, para o que seria uma noite cheia dos prazeres que as melhores qualidades humanas podem proporcionar. Na plateia, enquanto eu esperava a cortina subir, tinha a cabeça do outro lado do mundo, onde pessoas como nós também haviam se preparado para uma noite cheia de prazeres e agora sofriam com a dor que só os piores defeitos da humanidade podem proporcionar. O contraste entre as duas situações me levou de volta à singela filosofia de botequim que citei no começo da sexta-feira.

Antes de começar o espetáculo, a diretora do Miami City Ballet, em vez de apresentar o programa da noite, apenas pediu à plateia um minuto de silêncio pelos acontecimentos que se desenrolavam em Paris naquele momento. O minuto me transportou à cidade, vi-me junto ao sofrimento das vítimas do ataque e me dei conta de que a mesma coisa poderia estar acontecendo também ali, no Kravis Center, ou em qualquer outro lugar do mundo.

O pano subiu em silêncio, a música de Tchaikowski encheu o teatro e a companhia proporcionou à plateia um espetáculo soberbo. Pensei que também em outros lugares do mundo outros balés eram encenados, espetáculos continuavam, concertos e shows aconteciam, restaurantes serviam banquetes, e que os ataques de Paris seriam totalmente incapazes de pará-los todos, por mais horror e medo que tentassem espalhar em nós. Os músicos, bailarinos – mesmo a plateia daquela sexta-feira no Kravis Center -, como em tantos outros lugares do mundo onde os espetáculos não pararam naquela noite, talvez não soubessem, mas estavam exatamente provando que as qualidades humanas serão, sim, suficientes para superar os defeitos humanos.

A própria cidade de Paris é também prova disso. Mesmo assolada pela Noite de São Bartolomeu, mesmo banhada pelo sangue que correu da guilhotina durante a Revolução, mesmo ocupada pelos invasores Nazistas, mesmo hoje ferida pela intolerância do obscurantismo religioso, a cidade sempre resplandeceu invencível como a “Cidade-Luz” que indiscutivelmente é. Nenhuma outra cidade do mundo tem testemunhado mais vezes o duro combate entre a luz das qualidades humanas e o obscurantismo de seus defeitos, e Paris tem saído sempre vitoriosa dessa luta. Ela representa, entre todas as cidades do planeta, o ápice da nossa civilização enquanto espaço de cultura, arte, ciência e celebração da vida. Nenhuma cidade tem sido em toda História maior protagonista nesse longo combate entre a luz do conhecimento e a treva da ignorância, e nenhuma cidade do mundo hoje resplandece mais do que Paris.

Os tiros e bombas do terror obscurantista são patéticos e ineficazes diante da força dessa luz, que brilha do alto da Torre Eiffel aos palcos de todo mundo, onde jovens dançam há mais de um século e dançarão para sempre o Lago dos Cisnes, para desespero e derrota dos que odeiam a luz.

Paris é a prova de que as qualidades humanas serão mais que suficientes para superar os seus defeitos.

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