Jorge Nunes

Vinte e cinco de abril sempre

A bandeira de Portugal, com um cravo vermelho na ponta do mastro, desfila pela Avenida da Liberdade, em Lisboa. Foto: Jorge Nunes/AcheiUSA

Todos os anos, no dia 25 de abril, passa por um largo boulevard no centro de Lisboa, apropriadamente chamado de Avenida da Liberdade, uma multidão que caminha desde a Praça Marquês de Pombal até o monumento aos Restauradores, defronte à estação do Rossio. São milhares de pessoas, homens, mulheres, velhos e crianças, de todas as raças e classes sociais. A maioria carrega um cravo vermelho na mão, ou preso à roupa, e muitos levam faixas, cartazes e cantam slogans por essa ou aquela causa que defendem. É uma manifestação pacífica: não há conflitos ou confrontações de qualquer espécie, ainda que grupos de todas as matizes ideológicas dividam a pista da Liberdade. Há de tudo, desde os mais empedernidos comunistas aos mais conservadores reacionários, passando por grupos feministas, defensores da diversidade sexual, grupos pela causa imigrante, pela igualdade racial, religiosos de todos os credos etc. Não se vê polícia ou qualquer aparato de repressão popular, como batalhões de choque, cães e afins. A passeata segue em paz, e no seu auge a multidão toma toda a extensão da avenida – um mar de gente caminhando, celebrando a liberdade e propagando seus ideais. Um slogan em particular, entretanto, é o mais repetido pela multidão: “Vinte e cinco de abril sempre! Fascismo nunca mais!”, cantam com orgulho os portugueses, agitando seus cravos vermelhos enquanto marcham pela Avenida da Liberdade.

Essa multidão comemora a chamada Revolução dos Cravos, que em 25 de abril de 1974 derrubou a ditadura que oprimia Portugal há quase cinquenta anos. Inspirado nos ideais fascistas, o Estado Novo de Antonio Oliveira Salazar controlou durante décadas o país com mão de ferro, à custa da censura, da perseguição violenta aos opositores e da restrição aos direitos políticos dos cidadãos. Salazar ficou no poder até ser afastado em 1968 por incapacidade física, depois que caiu de uma cadeira e teve uma lesão cerebral. A queda de Salazar, entretanto, não tirou Portugal da sua tirania. O país continuou sob o duro regime que o prendia a um histórico atraso econômico e social e o afastava das jovens democracias sociais europeias, que já usufruiam da prosperidade recuperada depois da Segunda Guerra. A Europa então respirava ares mais liberais, traumatizada com o horror das duas grandes guerras que a tirania e o fascismo causaram na primeira metade do século. No começo da década de 1970, entretanto, Portugal ainda era um país pobre e atrasado, em descompasso com um mundo em transformação, uma exceção em meio aos avanços sociais que se espalhavam pela Europa ocidental na época.

Para piorar, o regime salazarista insistia em uma política colonialista condenada e abolida já por quase todos os países europeus que tinham colônias pelo mundo. Pouco a pouco, potências como Grã-Bretanha, França, Holanda e Alemanha iam libertando suas colônias d’além-mar, enquanto Portugal desconsiderava a nova ordem mundial que surgia, e enfrentava em guerras os revoltosos pela independência de Angola e Moçambique, duas de suas maiores colônias.

Por fim, farta de tanto atraso e asfixiada pela longa repressão, a sociedade portuguesa eclodiu finalmente numa revolta para acabar com a ditadura. No dia 25 de abril de 1974, um grupo de militares que conspiravam contra o governo ocupou posições-chaves em vários quarteis e anunciou a revolta. A senha para a ação foi a transmissão pelo rádio da canção “Grândola, Vila Morena”, de Zeca Afonso, então censurada pela ditadura por “fazer alusão ao comunismo”. O governo ainda tentou rechaçar o levante, mas fracassou, posto que a maioria do exército já tinha aderido ao golpe. Pelas ruas de Lisboa, a população colocava cravos vermelhos no cano dos rifles dos soldados revoltosos, o que acabou dando o nome de “Revolução dos Cravos” ao levante. Populares cercaram a sede da polícia política do governo e quatro pessoas morreram, mas ao final do dia Portugal estava livre. Dois anos depois, uma nova Constituição e eleições livres sacramentaram a democracia no país, que todo dia 25 de abril é comemorada nas ruas, com a celebração da Revolução dos Cravos. Hoje, Portugal é um dos países mais liberais do mundo e vive uma espécie de época de ouro de prosperidade e estabilidade social.

Olhando a multidão passar lentamente pela avenida com suas bandeiras e faixas, seus slogans e cravos vermelhos sob o sol da primavera, não pude deixar de pensar na enorme diferença de amadurecimento político entre portugueses e brasileiros. A marcha de 25 de abril é inclusiva, tolerante e pacífica por natureza, visto que ela celebra justamente a derrota dos ideais de exclusão, intolerância e beligerância, instrumentos com que as ditaduras oprimem o povo e controlam o poder. Hoje, no Brasil, seria impossível imaginar o povo nas ruas com esse mesmo espírito que move os portugueses. Hoje, no Brasil, a intolerância, a exclusão, o preconceito e o ódio dominam os debates e as manifestações populares, e é praticamente impossível a convivência entre defensores de ideias opostas.

A diferença está na memória. Como país milenar que já foi a maior potência do mundo, Portugal tem a experiência e a vivência como nação para perceber o mal que ditaduras causam aos povos, e quer manter sempre viva a chama revolucionária que libertou o país desse mal. É por isso que homens, mulheres, crianças e velhos de todas as raças e crenças cantam a plenos pulmões pela Avenida da Liberdade, todo dia 25 de abril:

“Vinte e cinco de abril sempre! Fascismo nunca mais!”

 

 

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