Jamari França

A música dança conforme a novela manda no Brasil

Livro analisa as relações entre a música e as novelas brasileiras

O mercado musical brasileiro hoje está condicionado às novelas da Rede Globo de Televisão. A cada nova produção para os quatro horários tradicionais – 17h30, 18h, 19h e 21h – as gravadoras oferecem suas prioridades na esperança de ter um destaque como tema de alguma trama preponderante na história. A produção examina as opções, escolhe as que interessa e também encomenda outras, tudo num jogo de equilíbrio de interesses.

O casamento de novela com música popular tem sua história contada num livro recém lançado, Teletema – A História da Música Popular Através da Teledramaturgia Brasileira – Primeiro Volume 1964-1989, do jornalista Guilherme Bryan e do pesquisador Vincent Villari. Uma pesquisa meticulosa enumera cada novela dos canais produtores, historicamente a falecida TV Tupi e a Globo. O segundo volume, previsto para daqui a dois anos, chegará até as produções mais recentes.

Acho que é uma peculiaridade brasileira que uma mídia eletrônica tenha uma influência esmagadora sobre o que a maioria silenciosa vai ouvir e apreciar. Quando vejo jovens em programas de TV se empolgando com canções de nível rasteiro do chamado sertanejo universitário ou com esse samba baixos teores que chamam de pagode, me remeto à década de 80 quando os adolescentes curtiam canções  de inspiração superior de algumas bandas de rock daquela geração. Pais e Filhos da Legião Urbana, por exemplo, uma letra reflexiva sobre a paternidade e as relações entre as gerações.

Cantores e grupos do mainstream exploram situações amorosas bem ou mal sucedidas em letras pobres e melodias redundantes. As emissoras de rádio vão atrás do que toca nas novelas e demais programas televisivos. Os nomes se repetem exaustivamente e não apenas na Globo. Você pode ver, por exemplo, Michel Teló e Luan Santana numa mesma semana em dois ou três canais diferentes, idem para duplas sertanejas tipo Zezé de Camargo e Luciano, Chitãozinho e Xororó, Munhoz e Mariano, Bruno e Marrone, Victor e Leo, etc.

Os que são contratados da Som Livre, a gravadora da Rede Globo, se espalham pelos programas da casa. Um deles virou piada nas redes sociais, o pagodeiro Thiaguinho, onipresente em novelas, programas de auditório, de entrevistas, de humor, de automobilismo, esportes e, claro, com músicas em alta rotação na novela. Entre as gozações as de que só faltava ele aparecer de coroinha na Santa Missa ou na lida do campo no Globo Rural.

Em Teletema o autores mostram como a música foi gradualmente se tornando dependente das novelas, à medida que o formato se popularizou. No passado as gravadoras relutavam em ceder fonogramas de seu cast para as novelas. Nelson Motta, um dos produtores de trilhas citados no livro, diz que o motivo era que as novelas eram consideradas cafonas. Aos poucos, diante da inegável popularidade das soap operas, foram se chegando,  primeiro através de convênios de uma gravadora para que uma emissora, a Tupi, por exemplo, fizesse trilha com seu cast.

A Globo criou a Som Livre em 1969 e os temas inicialmente eram com seus contratados. Passou-se por estágios como trilhas compostas inteiras por determinados artistas, o livro cita exemplos: “Roberto e Erasmo Carlos conceberam os temas de O Bofe; Baden Powell e Paulo César Pinheiro foram os responsáveis pelo LP de O Semideus; Toquinho e Vinicius de Moraes fizeram toda a trilha de O Bem Amado e a maior parte da de Fogo Sobre Terra; Raul Seixas e Paulo Coelho ficaram à frente do disco de O Rebu.”Nelson diz que esse formato não rendeu o esperado, daí consolidou-se o formato de repertório variado que incluía músicas especialmente compostas e gravadas por grandes nomes da MPB como Elis Regina, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tim Maia e Egberto Gismonti, entre muitos.

O agora setentão Nelson Motta diz que a trilha de novela ganhou status definitivo com o sucesso da trilha de Véu de Noiva (1969) com o mega sucesso que dá nome ao livro, Teletema, de  Antônio Adolfo e Tibério Gaspar, cantado por Regininha, da Turma da Pilantragem (regravado pelo Kid Abelha em 2000 no CD Coleção).

O presidente da Som Livre, João Araújo, teve a ideia de fazer também uma trilha internacional para cada novela, o que se tornou um filão de ouro para a gravadora, com vendagens superiores às das trilhas nacionais com canções que tiveram aqui sucesso infinitamente maior do que nos países de origem, como Skyline Pigeon, de Elton John, e Rock and Roll Lullaby, do obscuro B.J.Thomas. Estas duas da novela Selva de Pedra, de 1972, com vendagem de 949,3 mil cópias, contra 359 mil da versão nacional. O recorde pertence ao álbum internacional de O Salvador da Pátria, de 1989, com artistas populares como Rick Astley, Phil Collins, Whitney Houston e Bon Jovi: 1,4 milhão de cópias.

As altas vendagens das trilhas criava um dilema no caso dos artistas nacionais. Como as canções das novelas acabavam indo pra rádios, o artista que cedia um fonograma para a Som Livre nem sempre, ou quase nunca, conseguia vender seu próprio disco na proporção do sucesso que sua canção fazia. Isso porque o comprador preferia comprar a trilha da novela onde estavam as músicas badaladas na telinha e nas rádios. Para estourar tinha que estar na novela, mas isso não garantia vendagem dos discos de carreira. Mas rendia direitos de execução e contratos para shows país a fora.

Em meados dos anos 90 entra em cena um novo protagonista, a internet, com potencial de grande agente de divulgação que acabou se concretizando em alguns casos, vencidas algumas barreiras como a qualidade do sinal e a disseminação do acesso, muito longe ainda do ideal. A internet não mexeu a fundo com a influência das novelas no mainstream, mas há casos como do grupo Sambô, que toca rock em ritmo de samba e chamou atenção pelos mais de 900 mil acessos de um clipe de Sunday Bloody Sunday, do U2. Os roqueiros espumam de raiva mas pegou. A web viabilizou a carreira de artistas e principalmente de bandas de rock que não tem acesso à grande midia, ou não tem mais, como o ex-Kid Abelha Leoni e o Biquini Cavadão, ambos da Geração 80, e bandas mais recentes como Detonautas Roque Clube (seu vocalista Tico Santacruz tem mais de um milhão de seguidores).A música no país das novelas dança conforme a Globo manda. Até quando. não sei. Um  dia, quem sabe, se concretize a profecia da canção oitentista do RPM: “No underground repousa o repúdio e deve despertar.”

 

Jamari França

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