Reportagens Especiais

Cleaner: uma profissão entre o amor e o ódio

Não é fácil encontrar alguém que diga que ama o que faz. No caso das ‘marias do clean’ é praticamente impossível. Quase todas odeiam o que fazem, quase todas gostariam de ter outro trabalho, quase todas reclamam todos os dias de dores nas costas, e quase todas continuam exercendo a mesma profissão por anos a fio. Umas até guiadas por um certo masoquismo. “Eu estou há sete anos ‘lavando vaso’ com amor”, diz a carioca Tereza Andrade, há sete anos vivendo nos Estados Unidos e há sete anos trabalhando com clean. Outras são mais comedidas: “eu não vejo problema em ‘limpar vaso’; eu até gosto”, diz a capixaba Dayse Vasco, 26 anos.

“Limpar vaso” é a expressão usada por elas para tentar metaforizar o que significa um dia no clean; significa limpar a sujeira alheia, sem asco ou rejeição. Limpar vaso, mesmo, poucas gostam; assim como também detestam passar mop e vacum. A maioria prefere a limpeza seca, ou seja, tirar poeira, ‘fazer camas’, limpar móveis, etc., a exemplo de Lucilene Gomes, 34 anos, também do Espírito Santo, e que é a ‘help’ de Dayse. ” O que eu detesto é ficar pegando em água”, diz.

E é assim que elas dividem a limpeza de uma casa: uma faz a limpeza seca, outra faz a molhada. As duas trabalham numa sincronia que é essencial para o bom andamento de uma limpeza. “Eu ajudo ela a ‘fazer as camas’, para ir mais rápido, então eu entro nos banheiros e ela segue com a limpeza seca”, diz Dayse, dentro de uma casa em Boyton Beach, com quatro quartos, três banheiros; e com cachorro. “Ah! O que toda cleaner odeia é casa com bicho”, explica. “É pêlo por todo lado”, completa. Lucilene, mais calada, só sorri concordando; até porque essa é a parte dela: tirar pêlos dos carpetes.

Elas já tinham vindo de uma casa também de quatro quartos, em Boca Island, mas que conseguiram fazer em 1h30. O mesmo tempo não foi suficiente para esta segunda casa, onde despenderam 2h35. “Às vezes não importa muito o tamanho da casa, mas a situação em que elas estejam”, destaca Dayse.

Mas elas têm o privilégio de não trabalharem para outras companhias onde o tempo de permanência em cada casa é cronometrado. “Eu já trabalhei quatro meses assim e é horrível. Você fica sob pressão; nem trabalha direito”, reclama Lucilene. Nesses casos a dona da companhia aciona bip ou telefona para as meninas, várias vezes ao dia, para saber que hora entraram e que hora saíram do lugar. Tereza defende: “você tem que controlar para saber se as meninas estão trabalhando ou não; se você não fiscaliza, elas podem até nem ir na casa e você não vai saber”, diz.

O sonho do schedule próprio
Tereza é a chefe da Dayse e da Lucilene, por enquanto, e não faz marcação cerrada com elas. A dupla trabalha tranqüila e vai trabalhar mais tranqüila ainda já que a Dayse está comprando o schedule de Tereza, que por sua vez está comprando três novos schedules de uma companhia. E esse é o objetivo da maioria das ‘marias do clean’. Ou seja, realizar o sonho do schedule próprio.

“Eu já tive casas próprias, já larguei, fui para o Brasil, voltei trabalhando como ‘help’ e agora estou comprando essas casas”, conta Dayse, que é separada, tem um filho, e diz nunca ter tido outra profissão que desse tanto dinheiro. Até teve, mas trabalhava mais. Quando trabalhava em um restaurante, 12 horas por dia, ganhava cerca de 700 dólares por semana. Hoje, pela companhia, ganha cerca de 350, mais quatro ‘casas próprias’ – que deve cobrar entre 50 e 65 dólares por cada-, e consegue chegar em casa às 6 horas. Outro privilégio já que, em algumas companhias as cleaners trabalham das 8 às 18, mas têm que fazer de quatro a cinco casas por dia.

Mas conquistar esse privilégio não é fácil. Ter o schedule próprio custa caro; e mantê-lo, mais caro ainda. “Eu já vendi ‘casas’ para uma menina que não conseguiu mantê-la por dois meses, simplesmente porque não falava inglês”, diz Tereza.

Essa é a primeira auto-exigência para quem quiser ter um schedule: falar inglês. Até porque, muitas vezes, as clientes gostam de conversar. “Ah! Uma coisa que odeio é quando as velhinhas querem conversar. Elas querem contar a vida, o que aconteceu durante a semana, e eu não tenho paciência”, conta Dayse, que além de tímida diz que um bate-papo atrapalha o andamento da limpeza. Numa das casas em que estivemos, por exemplo, a dona, naturalmente “chata”, havia sofrido uma cirurgia e, estando mais sensível, tentava conversar sobre alguma coisa, sobre o trabalho. Era mais para ter um pouco de atenção do que para solicitar serviço, propriamente. “Isso acontece muito. Quando estão mais fragilizadas elas querem mais atenção, falam dos filhos, do passado”, diz Dayse. As meninas, quando falam inglês, acabam sendo um pouco confidente das clientes, especialmente as idosas, que são muito solitárias.

As gafes com a língua
Mas quando a pessoa não fala inglês, o resultado pode ser desastroso. Se a pessoa não entende um bilhete da ‘patroa’, pode perder a casa. Se ela pede para fazer algo, a cleaner finge que entende e acaba não fazendo o que ela quer, também pode perder a casa.

E há também casos engraçados, como um relatado por Tereza. “Um dia uma ‘help’ chegou para mim, quase chorando e  reclamando:-Tereza, não sei mais o que fazer. Eu limpo da Srª Fulana com tanto carinho e ela não gosta de mim. Hoje eu caprichei, e tudo que ela sabe dizer é que meu trabalho é terrific. Eu não aguento mais!”, reclamava a garota, enquanto tereza ria sem parar, antes de explicar que terrific significa maravilhoso e não terrível.

Mas hoje é razoavelmente mais fácil trabalhar sem inglês, porque há muito tempo, quando não havia esse excesso de companhias, as cleaners tinham que aprender por conta própria como usar os produtos e acabavam usando produtos errados nos objetos. Assim era fácil estragar uma obra de arte, manchar uma mesa, etc.

As meninas garantem que com elas isso nunca aconteceu. “Eu comecei como ‘help’ e me ensinaram qual produto é o certo para cada coisa”, diz Lucilene, que de inglês entende quase nada, trabalha há três anos como help, e nem faz questão de ter ‘a casa própria’. Ganha 15 dólares por cada casa -de 280 a 300 dólares por semana- e está satisfeita. “Para mim é suficiente”, diz conformada. Por suficiente ela quer dizer razoável para pagar o quarto onde mora, sair uma vez ou outra, e enviar um pouco para o filho no Brasil.

Assaltando geladeira de madame
Lucilene é uma das que, pelo menos na frente da reportagem, não reclama do trabalho. “Você entra numa casa, para limpar, ninguém te perturba – na maioria das vezes as donas não estão em casa-, ninguém fica apontando o que você tem que fazer. É bom!”, diz a ajudante. A mesma idéia é defendida pela maioria das cleaners, que apontam esse como um dos pontos mais positivos do clean. “O melhor desse trabalho é a liberdade que você tem, sem ter horário fixo. tanto você pode demorar como pode terminar antes a limpeza, não tem um tempo exato. E também sem ninguém te dando ordens o tempo todo”, afirma Tereza.

Por liberdade também entenda-se fazer coisas não politicamente corretas dentro de uma casa. Todas negam se você perguntar se elas provam roupas e sapatos das patroas e “assaltam geladeiras”, quase todas vão negar; mas muitas o fazem. “Fazem sim. Eu mesma já fiz bacon com ovos, sopa, tomei refrigerante, iogurte”, admite Tereza. As outras duas dizem que nunca o fizeram.

É comum, por exemplo, algumas meninas correrem em direção à geladeira para ver o que tem de gostoso e diferente. “Quando a pessoa chega do Brasil, não conhece quase nada e vê aquele monte de coisas diferentes numa geladeira, tem vontade de provar”, diz Tereza.

O dia em que as cinzas do dono da casa ‘foram pro ralo’
E é assim, entre gafes e tropeços, e um razoável dinheiro, que as ‘marias do clean’ vão levando a vida de imigrante. Há dias tristes, como um em que Tereza viu morrer um dos seus clientes, com 94 anos, porque escorregou no chão molhado. E há outros engraçados, como o que aconteceu com uma amiga dela, que na ânsia de fazer seu melhor trabalho foi lavar um vaso que encontrou com cinzas. Só depois, ao ver a velhinha, dona da casa, histérica, entendeu que tinha acabado de jogar pelo ralo as cinzas do marido da dona da casa.

Mas no fim o que compensa é mesmo o dinheiro, como na maioria das profissões de imigrante. Quase 80% das brasileiras que fazem clean odeiam o que fazem, mas não deixam de fazê-lo fácil. “Porque é um dinheiro que você ganha na proporção do que faz”, lembra Dayse. Ou seja, se a pessoa trabalha mais, ganha mais. E se a cleaner tem o seu schedule, faz suas regras.

O pior mesmo é quando a mulher tem filhos e marido aqui, porque aí o dia não termina. Após às seis, quando saem do trabalho, se extende o expediente na casa delas: limpar, cozinhar, lavar louça, preparar o espírito para, no dia seguinte, levantar outra vez às 6h ou 6h30, preparar os filhos para levar para a escola ou pro baby sitter, e procurar ânimo para limpar vaso outra vez.

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