Há muitos anos, fiz um checkup geral e o médico disse para eu tomar um remédio para controlar o colesterol. Fui comprar – e fiz a besteira de ler a bula. Era tanto efeito colateral que pensei: “isso vai me encher muito mais a paciência do que um colesterolzinho”. Well…. não.
Pausa dramática.
Voltando de Miami uns dez anos atrás, li o relato de uma mulher que descobriu ser autista adulta. Ela se achava só “esquisita”, até perceber que tudo batia: sensibilidade a sons, luz, cheiros, textura; necessidade de rotina; desgaste social; hiperfoco; rigidez; cansaço pós-interação; camuflagem social; interesses intensos; desorganização; sobrecarga sensorial; poucos amigos. E aí caiu a ficha: eu sempre achei que tinha Déficit de Atenção, mas era TEA – Transtorno do Espectro Autista. E aí faz sentido: a gente se adapta, faz malabarismos, cria rotinas internas, mas o desconforto continua lá, firme, olhando para você.
Outra peculiaridade do autista adulto, especialmente homem, é a completa incapacidade de administrar a própria saúde. Não é que “não ligamos” – é que simplesmente deixamos pra lá qualquer alerta do corpo que outras pessoas tratariam imediatamente.
E aí, um dia….
Eu estava no meu escritório, na Itália, trabalhando, quando percebi que meus batimentos estavam subindo sem parar. Não, eu não estava olhando extrato bancário nem site pornô. Só trabalhando mesmo. 140, 150, 170 bpm. Normalmente eu ignoraria – clássico – mas no dia anterior um amigo de infância, Antonio Yoshida, tinha morrido de um infarto fulminante. Pensei: “ok… vou ao hospital”.
Peguei o carro e fui. Mal cheguei na recepção, me colocaram numa maca e me internaram. A cardiologista fez um ultrassom e disse que uma parte do meu coração não estava se mexendo. “Provavelmente é um infarto.” Que delícia.
Fui parar na UTI. E sabe o que mais me assustou? Não foi morrer. Foi a camisola. Ficar pelado. Não poder levantar para ir ao banheiro fazer o número 2. Primeiro, me recusei a ficar sem cueca – não tinha nada lá embaixo que eles precisassem cutucar. Depois, adotei a dieta líquida: chá e água. Número 1 no papagaio, ok; número 2 em área aberta? Jamais.
Marcaram o cateterismo. Me levaram para a sala do procedimento – pelo menos me deixaram coberto. O que eu não sabia é que eu ficaria acordado. Sem sedação. Sou resistente à dor, mas na hora em que ele enfiou o tubo na artéria do pulso… eu vi estrelas. Segunda pior dor da minha vida. A primeira foi a pedra no rim.
Resultado: coronária direita 100% bloqueada. Nada recente – o corpo já tinha criado “veias paralelas” (até no coração faço gambiarra). Não me deram muita esperança de desentupir, nem com remédios nem com angioplastia. Pedi alta, peguei um avião e vim tratar no Brasil – afinal, pago plano de saúde há anos sem usar.
Chegando ao Hospital São Luiz, novo check-in, nova camisola (lá-lá-lá, camisolinha…). Pelo menos dessa vez o concierge me deu um roupão assim que cheguei ao quarto. E eu podia usar o banheiro do quarto – mas precisava avisar as enfermeiras, que demoravam mais do que minha paciência. Para piorar, peguei gastroenterite na comida do avião. Tudo líquido. Eu mesmo desligava os fios e corria. Desculpa, enfermagem. Perdi uns três quilos: valeu a pena.
Foi minha segunda internação na vida. E, sinceramente, ser espetado de madrugada, perder a mínima dignidade, não poder ir ao banheiro em paz… me incomodava mais do que o risco de ter um coração meio crocante. Coisas de autista, imagino. Eu sei que “elas estão acostumadas a ver gente pelada”. Eu é que não estou acostumado a ser a pessoa pelada.
Os cardiologistas se reuniram e decidiram tentar a angioplastia – mesmo com poucas esperanças. Me explicaram tudo e, no terceiro dia, lá fui eu. De cueca, claro. Só tirei na sala.
A grande vantagem: dessa vez me sedaram completamente. Aleluia. A coronária estava “muito feia”, segundo o cardiologista. Três horas e meia de procedimento, acesso pelo pulso e pela virilha ao mesmo tempo. No fim, conseguiram abrir a passagem (provavelmente com Diabo Verde) e colocaram três stents.
Isso foi na quinta. No domingo à tarde eu já estava em casa, com um zilhão de comprimidos. E talvez – só talvez – se eu tivesse tomado o remédio para colesterol lá atrás, nada disso teria acontecido.
Ou talvez sim, porque genética é genética e minha família toda têm histórico de problemas cardíacos.
Fica aqui meu agradecimento à equipe do Dr. Rafael Franco pelo trabalho impecável – e à equipe de enfermagem da UTI do Hospital São Luiz por não ter me expulsado de lá.
