Literatura

Brevíssima História do Brasil, por um sobrevivente

Ilustração de Kacio Pacheco

Por Evandro Barreto*
Ilustração de Kacio Pacheco

PRÓLOGO

Disposto a ajudar uma amiga carioca a desvendar o mistério brasileiro para o marido americano, e também por não ter muito o que fazer durante o isolamento forçado pela Covid-19, resolvi produzir este registro, com a credencial de quem, às  vésperas de completar 85 anos, tem sobrevivido ao inimaginável. Na pandemia anterior, dita “gripe espanhola”, que exterminou parte ponderável da população mundial há cem anos, minha mãe perdeu uma irmã, mas saiu incólume. Na atual, conto com a sorte e com a cautela possível para repetir o feito.

Como o Brasil é grande, o tempo é largo e tenho pavor de prolixidade, aproveito este prólogo e sugiro à minha amiga que prepare o esposo gringo para o que virá depois com uma única frase: a diferença fundamental entre a nossa terra e a dele é que os europeus chegaram aos Estados Unidos para ficar, e aportaram no Brasil para levar.

A minha história do Brasil começa com Pedro I, porque antes dele a gente não tinha nada com isso.  E se estende até a época em que o atual Presidente da República responde à calamidade com “E daí?” Enquanto ex-presidente que joga na outra ponta festeja: “Ainda bem que a Natureza trouxe a pandemia”.


Capítulo 1

“O Hoje é um corredor de mão dupla entre o Ontem e o Amanhã, disse o conselheiro Acácio fake”

A primeira vez que o Brasil morreu foi quando Pedro I voltou para Portugal e deixou o trono para o filho de cinco anos. Que país é este, perguntou a criança.  E o regente de plantão explicou que o Brasil era a única colônia do mundo tornada independente pelo príncipe herdeiro do reino colonizador. Daí ter se tornado um império sem colônias. O menino não entendeu e o regente também não. O bobo da corte comentou sem ser chamado que aqui a palavra real não tinha a ver com reis, mas com realismo fantástico. 

Vida que segue, o imperador cresceu e, como tinha juízo, a pátria amada ressuscitou inteira, enquanto a América Latina se fragmentava em dezenas de nações comandadas por caudilhos que se revezavam no poder, derrubando uns aos outros sob pretextos atualmente ignorados, já que na época não havia comunistas a temer. A passos de formiga e sem vontade (obrigado, Lulu Santos) o império atravessou quase todo o século XIX e caiu depois que tirou os escravos de baixo. Mas como os séculos também são lentos para terminar, os anos ’900 só começaram por aqui com a revolução de 1930, inevitável depois que a zelite da primeira república se mostrou incapaz de dar respostas sociais à pandemia espanhola e resistência econômica ao redemoinho que culminou na quebra de Wall Street em 1929.

“O Brasil morreu!”, gemeu a oligarquia da Era Letárgica. “Viva o Brasil” respondeu, com mais fé do que convicção, uma população doente, miserável e analfabeta. Para não negar um mínimo de mérito aos velhos mandantes, eles nos legaram fronteiras consolidadas sem sangue com sete vizinhos hispânicos e três possessões europeias.

Começava a Era Vargas, nascida de uma revolução,  dinamizadora em certos aspectos, mas petrificada por um autogolpe de inspiração fascista e encerrada por intervenção dos militares que lutaram contra o fascismo na II Guerra Mundial.  Mas isso é assunto para o próximo capítulo.


Capítulo 2

Do Estado Novo à Bossa Nova

Getúlio Vargas foi o primeiro governante de um  Estado laico de fato, como mandava a República.  Não por acaso, o filho mais velho chamava-se Luthero. Os livros de História não valorizam esse detalhe, mas a redução da influência da batina, conjugada com a proteção ao macacão de operário, via leis trabalhistas, foi passo  importante na modernização do gigante deitado em berço esplêndido. Como gaúcho da fronteira, Getúlio era cioso da soberania nacional. Mas não era um democrata.  Embora tenha vencido tentativas de golpe das duas extremas, mandado tropas para a guerra contra o nazi-fascismo e arrancado do governo capitalista americano apoio à construção em Volta Redonda de uma siderúrgica estatal, Vargas tinha alma de caudilho e malícia de populista. Contudo, não era burro. Entendia a importância da diversidade cultural, tolerava a irreverência dos artistas e a censura do seu ditatorial Estado Novo tinha certo molejo diante da crítica feita com humor. Caiu quando o pós-guerra redividiu influências no mundo, voltou pelo voto direto cinco anos depois e se matou no poder, acossado pela podridão dos subterrâneos do palácio.    

Não era um simples, mas o Brasil também não é.

Podem me chamar de JK

Na metade do século passado metade da população era analfabeta. Imagine-se a dificuldade do eleitor para soletrar Juscelino Kubitschek. Ainda assim foi eleito contra uma oposição raivosa para suceder a Vargas, tendo como vice um protegido de Vargas. Sabia dar nó em pingo d’água. Uniu o que havia de mais arcaico no meio político rural com o sindicalismo de cabresto urbano e temperou com as lágrimas dos saudosos de Getúlio. Deu certo. No primeiro mês de governo derrotou uma aventura golpista da Aeronáutica e anistiou os rebelados. Outra tentativa da mesma turma, dois anos depois, teve o mesmo desfecho patético, nova anistia. Enquanto isso, sem brigar com ninguém, JK virava o país de cabeça pra baixo e de bunda para o mar. Estradas rasgando o mato, hidroelétricas gigantescas, uma nova capital no meio do nada. E litros de adrenalina no espírito do povo. Brasil campeão mundial de futebol, de boxe, de tênis. Cinema brasileiro premiado em Cannes, arquitetura de Niemeyer redesenhando a estética do concreto  e, como o anseio épico patriota contentava-se com a realidade, sem precisar mais ser cantado em aquarela, o cancioneiro nacional explodiu ante o mundo por um paradoxal minimalismo: o “samba de apartamento”, que viria a  se consagrar com o codinome Bossa Nova. Um país pacificado e se sentindo, enfim, capaz de grandes conquistas. Pena que durou pouco.


Capítulo 3

Sê-lo-ia, se não fôra

Ao inverter os termos da inscrição na única bandeira nacional que vem com bula, colocando o progresso antes da ordem no pressuposto de que o desenvolvimento econômico traria a paz política e a promoção social, JK deixou como legado também a bagunça das contas públicas.

Assustada com a inflação e irritada com a corrupção favorecida pela falta de controle financeiro, a classe média que continuava a amar o “presidente bossa nova” escolheu o seu oposto para sucedê-lo.  Juscelino era simpático, informal, tinha aparência física de estadista do primeiro mundo. Jânio Quadros era caricato, provinciano, autoritário, moralista de palanque. O estandarte que carregava retratava a psicologia pequeno-burguesa, com sua ética louvável, seu bom-senso superficial, seu pavor à diversidade de costumes. Em muitos aspectos, eram os valores que viriam a  propiciar a eleição de Bolsonaro no século seguinte, com a diferença de que Jânio Quadros sabia gramática –  e a usava  com o pedantismo de um mestre-escola de aldeia, cheio de ênclases e mesóclises. Poderia até ser um gestor conservador competente. Sê-lo-ia, se não fôra doido de pedra. Em apenas sete meses no poder, promoveu um choque econômico liberal tipo Paulo Guedes, proibiu biquini e briga de galos, cogitou invadir a Guiana  Francesa, condecorou Che Guevara no Dia do Soldado, renunciou convicto de que voltaria no dia seguinte nos braços do povo e com carta branca para fazer o que bem entendesse. Mas alguém gritou: “Tira o bêbado!”.  E Jânio só voltou muitos anos depois, ao posto inicial de prefeito de São Paulo. Pra que? Pra nada.

À renúncia de Jânio seguiu-se o caos:  os militares não queriam dar posse ao sucessor legal, Jango Goulart, uma tentativa de clone de Getúlio Vagas digna do laboratório que criou Frankenstein. Foi o primeiro choque do legalismo civil, que não amava Jango mas amava a Constituição, com o mandonismo patriótico fardado, no auge da Guerra Fria. Ante a iminência do derrame de sangue, chegou-se ao compromisso do parlamentarismo, feito para não durar.  Como também foi efêmera a permanência de Goulart na Presidência, acossado simultaneamente pelos desembarcados do encouraçado Potemkin e os guardiães da geopolítica ocidental, escaldados por Cuba. Começavam os pesados anos da Ordem. Unida.


Capítulo 4

“Você não gosta de mim, mas sua filha gosta”

A proximidade histórica, e o muito que já se escreveu, disse e discutiu sobre os vinte anos da ditadura militar (1964 – 1984) dispensam-me da redundância. Pessoalmente, e tentando me desligar da emoção, vejo essas duas décadas como tivessem sido ocupadas na tarefa de restauração de um passado mítico e, quando tiraram o tapume, a obra continuava no esqueleto e com sinais de degradação. Prefiro resumir a dinâmica do período pela citação das canções de sucesso em cada estágio.

Março de 1964, no comício da esquerda:

Mas se ergues da justiça a clava forte, verás que um filho teu não foge à luta.

Março de 1964, na marcha da classe média assustada:

Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós

Abril de 1964, diante das reclamações da classe média assustada com os excessos da repressão:

Marchou com Deus pela democracia, e agora chia

Na gestação do AI-5:  

Quem sabe faz a hora, não espera acontecer

No desabrochar da contestação doméstica:

Você não gosta de mim, mas sua filha gosta

No auge do terrorismo cultural chapa-branca:

A esperança equilibrista sabe o que show de todo artista tem que continuar

No declínio do obscurantismo

Apesar de você, amanhã há de ser outro dia

No fim da Ordem Unida

Pode se preparar porque estou voltando


Capítulo 5

1985 – 2015
O avanço em espiral

A linha reta perfeita não existe na natureza. É ferramenta inventada pelo Sapiens para seus próprios fins. Mesmo um raio de sol, ao passar junto a um astro com gravidade suficiente, dá uma balançada de quadril. Logo, é pura ilusão acharmos que a evolução humana obedeceria a um percurso direto ao ponto de chegada, se é que ele existe. E quando se trata de evolução política, nem se fala. Nos últimos quinze anos do século XX e nos primeiros quinze anos do século XXI, tivemos muitas vezes a sensação de andar em círculos ou de retornar a um estágio que julgávamos superados. Felizmente, os fatos desmentem a impressão. Avança-se, sim, em curva espiral, passando muitas vez pelo mesmo cenário, mas num plano mais elevado.

Vejamos o caso do Brasil. Quando, por acaso ou destino, Tancredo Neves morreu antes da posse como primeiro presidente civil e democrático depois da longa noite, e tivemos que nos contentar com José Sarney, tememos a volta dos tanques. Mas Zé Ribamar, se foi péssimo gestor, confirmou ser um negociador hábil, que conduziu sem soluços a transição para o Poder Civil e assegurou espaço respirável para a que fosse escrita a melhor Constituição que o país já teve. No final do seu mandato, regeu com a possível isenção eleições diretas que culminaram na disputa entre um operário (algo inimaginável antes) e um novo “salvador da Pátria” (algo desanimador em qualquer tempo).

Ao ouvir o candidato Fernando Collor dizer  que só tinha uma bala de prata para matar a inflação, me apavorei. Lembrei-me de que o pai dele, no plenário do Senado, mirou no desafeto de Alagoas e matou o senador do Acre. Começava a crônica do desastre anunciado. Collor não abateu a inflação, mas quase exterminou o povo inteiro com o congelamento da poupança.  Enquanto isso, a sede foi ao pote com tal ímpeto que Collor caiu na metade do mandato e seu coletor de tributos para cofres privados acabou suicidado.

A faixa presidencial foi adornar o terno novo do vice Itamar Franco que, pelo comportamento intempestivo, não era levado muito a sério por correligionários e adversários. ”O Brasil morreu de novo”, lamentou a brava gente. Que nada!  Itamar fez um governo honesto, aceitou o plano real e abriu caminho para um sociólogo de centro-esquerda devolver o país redivivo a algo parecido com a normalidade. Fernando Henrique Cardoso manteve o mesmo Ministro da Fazenda por oito anos administrando a economia com sucesso, lançou um programa de renda mínima que viria a ser o embrião da Bolsa Família, conquistou o respeito internacional, apoiou a Lei de Responsabilidade Fiscal e conduziu com serenidade a mudança no centro do poder, com a eleição de Lula, que ele havia derrotado por duas vezes e a quem passou a casa arrumada.

Século novo, grandes esperanças.


Capítulo 6

A Estrela e o Big Bang

O chão-de-fábrica chegou, enfim, ao topo, não da maneira ansiada pela ala radical da esquerda, que sonhava com a ditadura do proletariado, mas por um encadeamento de compromissos, alguns válidos, outros nem tanto, que vieram a possibilitar um início glorioso. Lula nomeou banqueiros e empresários para o primeiro escalão, preservou o Plano Real, deixou em  paz a Constituição que seu partido havia se recusado a assinar.

Brilhava uma estrela.  Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida, recuperação do poder de compra do salário mínimo, acesso da classe baixa ao crédito bancário, promoção dos valores da cidadania. “Você é o cara”, disse Obama a Lula. “Agora, vai!”, disse o povo para si mesmo. Foi  –  até um certo ponto. Depois empacou, com a preciosa ajuda de parlamentares de várias siglas, de parte luxuosa do empresariado e de executivos da empresa estatal que era o orgulho da Nação. Mensalão, Petrolão, mais uma decepção. Mas sobrou fôlego para Lula escolher pessoalmente sua sucessora e leva-la à vitória.  O vento começava a mudar de direção e acabaria estocado, enquanto o Judiciário era levado a assumir o papel mais importante na Praça dos 3 poderes. A estrela era absorvida pelo buraco negro, prenunciava-se o Big Bang.

Dilma fez um governo desastroso em seu primeiro mandato e dobrou a meta depois da reeleição, a partir de uma convicção pessoal tão impermeável quanto rudimentar. Ironicamente, onde mais errou foi ao copiar a política econômica da ditadura no governo de Ernesto Geisel, em busca da autossuficiência industrial pela substituição das importações. Não deu certo, vieram as pedaladas fiscais e o embasamento jurídico para a decisão política do impeachment, num congresso em que os parlamentares petistas só falavam para si mesmos.

A sucessora acabou sucedida por um vice que detestava, e que mal teve oxigênio para tocar a bola no meio de campo, enquanto esperava o apito final.

Aí… ah, aí!  Olha outro salvador da pátria chegando, no lombo da sociedade em rede! É o que temos para hoje.

Último Capítulo e um epílogo                                 

Minha história termina Ontem, que o Hoje e o Amanhã são matéria prima da imprensa. Fosse  eu  escrever algo sobre o  imediato brasileiro, não usaria minhas próprias palavras e sim aquela escolhidas há meio milênio, mais atuais do que nunca, escritas por alguém que sabia tudo sobre o poder, sua febre, sua precariedade. 

 “…. uma história sem sentido, contada por um louco cheio de som e fúria”. (Shakespeare)


EPÍLOGO

O regime brasileiro é Vice-Presidencialista

Presidente da República é um emprego sem futuro. No Brasil, Vice é um posto promissor.

Começou com Floriano Peixoto. Primeiro Vice-Presidente da República, assumiu quando o titular, e também marechal, Deodoro da Fonseca renunciou ao descobrir que não podia tudo. Floriano também não poderia, mas foi fazendo. Até que não teve jeito senão passar o posto para o primeiro civil eleito, Prudente de Moraes, Recusou-se a entregar a faixa e pegou o bonde para casa antes do outro chegar. 

A mesma oligarquia que havia sustentado o império foi trocando presidentes a cada quatro anos, sem maiores incidentes e com um mínimo esforço, até que Afonso Penna morreu e Nilo Peçanha assumiu. A História acolheu os dois como nomes de ruas. Foi preciso acontecer por aqui a primeira pandemia, codinome gripe espanhola, para outro vice sentar na cadeira presidencial.  Delfim Moreira era o 02 da chapa de Rodrigues Alves, este vítima do vírus entre a eleição e a posse.  Delfim nem teve tempo de esquentar o assento.  A legislação de então determinava   que se o presidente morresse no início do mandato, o vice assumiria provisoriamente e nova eleição aconteceria.  Venceu Epitácio Pessoa, que  completou o período.

Com a chegada de Getúlio Vargas à frente da revolução de 1930, os vices saíram de moda e só voltariam a ter vez em 1954, com Café Filho, que substituiu o próprio Vargas, quando este se matou. Daí pra frente, as peças de reposição fizeram a festa.

Jânio renunciou, entrou Jango Goulart, graças a uma cretinice da Constituição de 1946, que permitia escolher o presidente de uma chapa e o vice da chapa oposta.  Os militares, que não engoliam Jango, tanto insistiram que o derrubaram, mas colocaram, no princípio, vices civis, que só eram  chamados para o cafezinho. O primeiro, José Maria Alkmin, perguntado por um jornalista se eventualmente assumiria o governo, respondeu: “Sumo, sim, meu filho”. O segundo, Pedro Aleixo, foi desistido quando o general da vez teve um AVC, do qual nunca se recuperou. Entrou uma junta militar, veio o AI-5 e os paisanos só tiveram voz  com a eleição indireta de Tancredo Neves.  Tancredo morreu antes da posse… e olha a volta dos vices! O primeiro foi Sarney , o segundo Itamar, o terceiro foi aquele a quem Brasília deu a mão. Michel Temer, sucessor de Dilma Rousseff, ela alvo de impeachment, ele alvo do Código Penal. Assim mesmo completou o mandato.

Neste ano da (des)graça de 2020, o Brasil tenta proteger-se de uma nova pandemia e de um novo presidente. Não sei porque, me lembro do refrão de um sucesso dos velhos carnavais: “Mourão, mourão, cutuca por baixo que ele cai”. 

(A série acaba aqui. O Brasil continua.)

*Publicitário e escritor

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