Histórico Opinião

Charlie Hebdo mais vivo que nunca

Na noite de 23 de agosto de 1572, o rei francês Carlos IX ordenou o assassinato do almirante Gaspard de Coligny, líder dos Huguenotes, como se chamavam os franceses protestantes calvinistas da época. A França, como boa parte da Europa, sofria com a divisão da cristandade entre os católicos fiés ao Papa e os reformistas protestantes seguidores de Calvino e Martinho Lutero, com as duas vertentes lutando pelas suas respectivas hegemonias religiosas no continente. Como resposta à crescente expansão protestante na França, o católico Carlos IX encomendou a morte de seus líderes. A matança, entretanto, não parou por aí: acabou estendendo-se por Paris e em seguida por toda a França, num banho de sangue que levou semanas e terminou com a morte de dezenas de milhares de franceses, no que ficou conhecido depois como o “massacre da noite de São Bartolomeu.” A matança foi o estopim para uma guerra religiosa na França que durou mais de trinta anos.

Na quarta-feira, 7 de janeiro, a mesma Paris sofreu novamente com o obscurantismo da intolerância religiosa, no ataque à redação do jornal satírico ‘Charlie Hebdo’. Três homens invadiram a redação do semanário e mataram a tiros de rifles AK-47 doze pessoas — dez jornalistas e cartunistas e dois policiais — enquanto gritavam ‘Allahu akhbar’ (Deus é grande), tendo como motivo uma vingança pela publicação no jornal de charges e caricaturas de Maomé, o profeta do Islã. Até o fechamento desta edição, os três homens haviam sido identificados como Hamyd Mourad e os irmãos Cherif e Said Kouachi. Mourad foi preso depois de entregar-se à polícia francesa, mas os dois irmãos ainda continuavam foragidos até a tarde de quinta (8). A França e o mundo entraram em choque com a brutalidade do ataque cometido contra o insumo mais básico e necessário para o ofício de jornalista, o direito à livre expressão de opinião e pensamento.

Entre esses dois episódios na capital francesa, separados por mais de quatrocentos anos, está a marca comum do obscurantismo religioso, cego para qualquer interpretação do mundo que não se coadune com seus dogmas. Em quatro séculos de progresso não fomos capazes de eliminar de uma vez por todas a imensa contradição que há por trás da violência religiosa. Religiões, antes de dividir povos e nações, deveriam cumprir exatamente o significado original contido na palavra “religião” – o de religar e unir as pessoas em torno de uma espiritualidade comum, que traga mais harmonia e tolerância para o mundo. Muito pelo contrário, a intolerância que motiva ataques terroristas contra quem não compartilha da mesma fé vai de encontro a esse preceito original, e ultimamente ela tem se manifestado mais forte que nunca, alimentada pelas nossas enormes diferenças sociais e culturais planetárias. Ainda que tenhamos feito progressos na distribuição da informação, com a evolução e o aumento da abrangência dos meios de comunicação, não fomos capazes todavia de disseminar por esses novos canais a informação necessária para acabar de vez com a ignorância violenta dos obscurantistas.

Os jornalistas e cartunistas do ‘Charlie Hebdo’ são nossos heróis da resistência. Eles morreram lutando pelo direito de pensar livremente e de espalhar esse direito indiscriminadamente pelo mundo. Os tiros dos terroristas não os calaram. Na verdade, serviram para ampliar ainda mais a sua voz, porque nunca a mensagem que eles transmitiram pelo seu jornal parisiense chegou a tanta gente, nunca se espalhou entre tantos a indignação contra esse modo brutal de representar com terrorismo os supostos desejos de uma divindade ou profeta. Por isso, nunca esteve tão vivo o ‘Charlie Hebdo’, e os seus jornalistas e cartunistas mortos é que são os verdadeiros mártires da liberdade. As palavras de Stephane Charbonnier, morto no ataque e várias vezes ameaçado de morte por fundamentalistas islâmicos, “prefiro morrer que viver ajoelhado”, representam bem a convicção de que, muito mais que qualquer religião aprisionadora, é o amor pela liberdade que traz nossa força para o combate contra a ignorância, é ele quem transcende a intolerância e o obscurantismo assassino, e é ele quem por fim vai acender a verdadeira luz do conhecimento para todo mundo.

Somos todos Charlie.

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