Opinião

Considerações sobre a polarização

Carlos Orsi*

Uma coisa que costumo dizer, quando me convidam para dar palestras sobre divulgação científica, é que é possível encontrar pesquisa feita sobre praticamente qualquer tema relevante que se possa imaginar. Digo isso para sugerir às pessoas que debates acalorados não precisam ser baseados só em afeto e palavrão, mas que dá pra trazer dados à mesa. Mesmo que os dados sejam falhos, inconclusivos ou passíveis de distorção, eles pelo menos ajudam a mapear o terreno em disputa.

Por exemplo: existe uma literatura ampla sobre o fenômeno social e psicológico da polarização, quando pessoas assumem atitudes extremas e se veem incapazes de levar o adversário a sério — qualquer pessoa menos extrema ou está vendida ou é idiota. E quem está no polo oposto é vendido e idiota.

É verdade que muito dessa literatura tem como foco a situação norte-americana, mas do jeito que andamos mimetizando as dinâmicas e o jargão de lá, tanto à esquerda (“empoderamento”, “blackface”) quanto à direita (com a onda de “neoconservadorismo” e o crescente ativismo político neopentecostal), de repente a coisa é aplicável. Queria aproveitar este momento para citar três artigos que me parecem relevantes ao momento atual.

O primeiro, publicado em 2013 no periódico Public Opinion Quarterly, parte de um questionamento que me parece fazer muito sentido por aqui: o de que a polarização em termos de visão de políticas públicas é, na verdade, muito menor do que parece. Afinal, quantos “direitistas” realmente querem acabar com o bolsa-família e privatizar o SUS? E quantos “esquerdistas” estão aí a fim do controle estatal pleno dos meios de produção e do fechamento compulsório das escolas privadas?

Os autores de Affect, Not Ideology: A Social Identity Perspective on Polarization propõem que são os afetos, as emoções, que realmente polarizam, não as diferenças ideológicas. Diz o “abstract”: “Usando dados de diversas fontes, demonstramos que tanto republicanos quanto democratas cada vez mais desapreciam, e até detestam, seus oponentes. Também descobrimos que o afeto partidário tem uma base inconsistente (e talvez falsa) em atitudes políticas. O relato mais plausível se baseia na natureza das campanhas políticas: a exposição a mensagens atacando o grupo externo reforça a visão enviesada que os partidários têm do oponente”.

Ou seja; a polarização tende a ter mais a ver com não ir com a cara das pessoas do que em concordar com as propostas delas. Para quem se lembra de que, na eleição presidencial de 2002, José Serra tinha uma proposta de política econômica mais à esquerda que a de Lula, isso faz sentido.

O segundo artigo, de 2010, publicado no Journal of Communication, investigou a relação entre exposição seletiva à mídia e polarização. O que a autora, da Universidade do Texas, encontrou foi uma espécie de efeito Tostines: “análises documentam que a exposição seletiva partidária leva à polarização. Alguma evidência sugere uma direção causal reversa, a saber, que a polarização leva à exposição seletiva partidária”. Um ponto positivo levantado foi o de que a polarização aumenta o nível de participação popular na política.

Essa maior participação dos radicais pode não ser, no entanto, uma boa notícia: artigo de 2013 no periódico Psychological Science tem um dos títulos mais desanimadores de todos os tempos: Political Extremism Is Supported by an Illusion of Understanding. Em outras palavras, as pessoas tendem a radicalizar-se quando acham que entenderam alguma coisa — sem na verdade ter entendido patavina.

Mas há, com o perdão do clichê, luz no fim do túnel! Em uma série de experimentos, os autores (Colorado-Boulder, Harvard, UCLA, Brown) encontraram apoio para a hipótese inicial de que “as pessoas tipicamente sabem menos sobre as políticas do que imaginam (a ilusão da profundidade explanatória) e que atitudes polarizadas tornam-se possíveis por modelos causais simplistas”. A adoção de modelos causais complexos, especificamente, milita contra o extremismo.

Avaliando esse ponto, os experimentos realizados como parte do estudo determinaram que pessoas radicalizadas não mudam de convicção quando se pede que elas enumerem suas razões para defender esta ou aquela política, mas que a convicção fervorosa diminui quando se pede que elas expliquem a mecânica de como a política funciona. “A evidência sugere que o senso errôneo das pessoas, de que entendem os processos causais subjacentes às políticas, contribui para a polarização política”.

Resumindo tudo: fazer a pessoa perceber que ela não entende a política que está defendendo ajuda a semear um saudável ceticismo. Mas muitas vezes as pessoas só parecem apoiar políticas; na verdade elas apoiam pessoas (ou apenas detestam as pessoas que se opõem às pessoas que apoiam). E o acesso restrito à mídia aumenta a polarização, ao mesmo tempo em que a polarização leva a um cardápio mais restrito de mídias.

O que fazer a respeito? Uma possibilidade é mudar as estratégias de debate, substituindo a enumeração de razões por uma abordagem mais socrática. Isso em relação aos outros. Mas também há lições importantes para nós mesmos. Em nosso diálogo interno: antes de assumir compromisso com uma causa, vale a pena perguntar se entendemos, de fato, os mecanismos pelos quais esperamos que ela funcione. Tomar cuidado com o estreitamento voluntário das fontes de informação. E tentar evitar que antipatias figadais tomem o lugar da razão.

*Jornalista e escritor

Compartilhar Post:

Baixe nosso aplicativo

Exit mobile version