Histórico

2º Colocado no III Prêmio AcheiUSA de Literatura

O texto abaixo foi escrito por Vinicius Pacly, de Pompano Beach, que obteve o segundo lugar no III Prêmio AcheiUSA de Literatura. Ele receberá de prêmio 500 dólares. Nas próximas edições do jornal, serão publicados os contos que obtiveram menção honrosa no concurso, bem como um perfil dos integrantes do júri: o vice-cônsul Paulo Amado, o presidente do AcheiUSA, Jorge Nunes, os jornalistas e escritores Angela Bretas e Roy Frenkiel, e o editor do AcheiUSA, Carlos Wesley. O concurso teve 30 finalistas e a vencedora foi a paralegal Gláucia Bastos.


A travessia

Por Vinicius Pecly

Um barulho ensurdecedor de helicóptero rasga o silêncio desértico do Arizona, fazendo com que o grupo de imigrantes debande numa revoada estratégica. Enquanto a polícia fronteiriça dispara, do alto, rajadas de metralhadoras, um rapaz mergulha no meio dos espinheiros, rastejando furtivamente sobre braços e ventre. Sente que os espinhos rasgam terrivelmente a sua pele. Abaixa a cabeça para proteger os olhos. Respira ofegante e, por vezes, pára cansado. Porém, a lembrança dos corpos mutilados e dos cemitérios clandestinos que encontrara pelo deserto, onde havia cruzes de madeira com a inscrição “no olvidado”, o fazem recobrar as forças e adentrar cada vez mais longe por entre os arbustos. Minutos após, encontra uma fenda no meio dos pedregulhos, o suficientemente grande para abrigá-lo. Sente-se falsamente seguro.

Num relance, jurou ouvir o apito da metalúrgica na cidade de São Paulo, anunciando o fim de mais um expediente. Sentiu-se caminhar com os operários e o pai para o portão central da fábrica, antes do acidente com a caldeira que fatalmente o vitimara. Tal episódio custou-lhe o status de arrimo de família. Ao “filho de ouro”, agora, caberia sustentar mãe e irmãs. A mais nova portava rara doença neurodegenerativa cujo tratamento importava na ingestão de medicamentos caríssimos, não fornecidos pelo SUS. Moravam todos numa meia-água, herança do avô nordestino que migrara na década de 70 fugindo da seca, na favela de Paraisópolis.

Obrigado a sacrificar o curso de Educação Física na Universidade Experimental – sonho antigo seu que fora acalentado pelo projeto social da Prefeitura que visa integrar os moradores da “comunidade” à dita “sociedade civilizada”, conseguira trabalho noturno como garçom num restaurante. A mãe limpava luxuosos apartamentos e mansões no Morumbi, quando ele não ia para a fábrica e podia ficar com a caçula nos finais de semana. Porém, a situação financeira da família continuava insustentável.

Numa noite:

– E aí, Brow! Tô preocupado com tu… te conheço desde moleque. A rapaziada respeita tu. Comando Geral mandou oferecer os préstimos.
– Valeu! Agradeço a preocupação. Mas penso existir outro jeito… Entende?!

– Tô ligado. Sei que tua alma não se afina com os esquemas do Movimento. Mas… Te lembras do Bruno, motoboy? Pois é, partiu pros States. Tá ficando cheio das verdinhas. Tu num precisa cuidar da mana, agora que teu velho partiu? Tem uns camaradas aí que me devem uma. Se quiser, cobro a dívida e arranjo um pacote promocional. $ 5.000,00 e tu atravessa em segurança. Diogo, só depende de tu.

Não dormira naquela noite. O processo de indenização pela morte do pai, sem solução. Venderia o computador, a impressora, as ferramentas do avô. Ainda receberia seus direitos trabalhistas na fábrica. Em sua mente, ferviam dólares.

O esquema era montado com a conivência de autoridades no âmago da Fiscalização. Embarcou no aeroporto de Guarulhos num vôo particular até o México, junto com um grupo. O teco-teco por pouco não caiu na Amazônia. Chegando ao destino, permaneceram dias trancados numa espelunca pavorosa, dominados por ratos, mosquitos, calor, aguardando a ordem dos coiotes para partir.

Na madrugada, o sinal. Tênis, jeans, camisa de manga longa e casaco grosso para suportar o frio do deserto. Numa sacola, algumas roupas, água e comida. Escondera $ 450,00 num fundo falso no cós da calça. Caminhavam a passos largos. Por vezes, corriam. Nos quase 100 km percorridos em três dias, um calor infernal beirando os 45ºC alternava-se com o frio sepulcral da noite. A baixa temperatura corrompia a pele, triturava os ossos, ensandecia as almas. Corpos feitos zumbis agonizavam e permaneciam unidos para trocarem calor e alento. Escaparam de cobras, escorpiões, lagartos, despenhadeiros e dos grupos de fazendeiros racistas, ditos defensores da América.
Verdadeiros caçadores humanos com sugestivas placas: “Divirta-se sob o sol”. Por fim, nenhuma mercê dos coiotes, traficantes de homens. Tal escória, corrompida por dinheiro, forjou delatar o grupo menor de imigrantes, para que o maior e mais lucrativo grupo atravessasse em outro ponto da fronteira.

Após horas de agonia, Diogo aterroriza-se com o uivo dos chacais que, capturando o seu cheiro na noite, aproximam-se vorazes para o banquete. Cessado o barulho do helicóptero, ousa deixar o esconderijo e retoma a rota de fuga. Um quadro aterrador – companheiros de travessia brutalmente exterminados. Quem irá chorar os que nunca mais tornarão a ver a luz do sol? Haverá quem os identifique, ainda que por suas fisionomias latinas, e os sepulte?

Reúne o fôlego restante, cala as lágrimas na face, esquece o cansaço, os cortes na pele, a sede, a fome e, num esforço sobre-humano, arrasta os pés feridos até os colossais muros de Tucson. Muralhas de concreto e aço faraonicamente erguidas sob o luar sinistro do deserto. Ignorando câmeras high-tech e sensores de movimento instalados em toda a extensão da barreira, pensa em Deus, na família e no sonho americano, tão perto e ao mesmo tempo tão inatingível. Na força adormecida do atleta, entrelaça as mãos fadigadas nos vergalhões aparentes e escala o atroz monumento. No topo, doce convite ao suicídio, lança-se num vôo audaz rumo ao vazio. Completamente distante da lucidez, o escuro.

A profunda inconsciência capta os espectros de luzes que vagueiam somando-se a vozes confusas e acolhedoras.

Um sussurro:

– Rapaz, acorda! Você está na América.

Sorri exausto e desfalece. Enfim, por Deus, de alguma forma conseguira.

O texto acima foi escrito por Vinicius Pacly, de Pompano Beach, que obteve o segundo lugar no III Prêmio AcheiUSA de Literatura. Nas próximas edições do jornal, os contos que obtiveram menção honrosa no concurso, bem como um perfil dos integrantes do júri.

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