Histórico

Até que o green card os separe

Casamentos por conveniência estão na mira da imigração, mas são prática comum para legalização

Em 2007, a carioca N. R. realizou, aos 40 anos de idade, o sonho de muitas mulheres: casou-se de véu e grinalda, numa igreja de Miami, com pompa e circunstância. No entanto, prestes a completar um ano de casada, ela não vai comemorar a data, até porque ela quer distância do marido. Aliás, ela mal o conhece e só se falam quando ele liga para pedir dinheiro. M.R. é mais uma brasileira que se uniu a um cidadão americano para receber o green card – e está sofrendo por causa da ganância de seu ‘príncipe encantado’.

Os casamentos arranjados se tornaram, com o arrocho da imigração nos Estados Unidos, a forma mais fácil e rápida de se obter a residência permanente num país cada vez mais intransigente com os imigrantes. Ninguém sabe ao certo quantas uniões por conveniência são consumadas todos os anos, mas o próprio Departamento de Segurança Nacional já admitiu que a situação está incontrolável e, por isso, estabeleceu um crivo mais cuidadoso na aprovação das certidões de casamento entre americanos e estrangeiros.

James Sparrow, chefe da unidade do ICE (a polícia de imigração americana) que cuida de casos de fraude, destaca que os casamentos arranjados ganharam até esquemas profissionais e se tornaram um negócio lucrativo para redes especializadas, com ramificações em vários estados, principalmente Nova York, Flórida, Califórnia, Texas e Utah. De acordo com um relatório divulgado recentemente por agências do governo, as quantias pagas por imigrantes indocumentados variam de cinco mil a 60 mil dólares. Mas o preço, às vezes, é muito maior que esse e não envolve só dinheiro.

“Estou arrependida, pois minha vida virou um inferno desde que dei entradas nos papéis da legalização“, conta N.R., que pediu para não ser identificada por motivos óbvios. Ela recorda que o ‘marido’, apresentado por uma amiga do trabalho, sempre foi muito cordial e simpático, e aceitou de pronto a proposta de 12 mil dólares – em quatro parcelas – pelo ‘teatro’ diante dos agentes de imigração. Foi dele a idéia de um casamento na igreja, com convidados e bufê, justamente para não despertar a atenção das autoridades. “Ele ajudou até a escolher o vestido, que comprei numa loja de West Palm Beach”, lembra N.R.

Ameaças por dinheiro e sexo

No entanto, tudo mudou poucas semanas depois do “sim”. De atencioso, o homem – um porto-riquenho três anos mais novo que ela – passou a ameaçá-la, pedindo mais dinheiro e até sexo em troca do silencio. N.R., que em função do casamento havia decidido se mudar para o mesmo condomínio do ‘marido’, em Sunrise, já decidiu arrumar as malas e se mudar para outro lugar, pois não está agüentando a pressão. “Eu sei que ele errou tanto quanto eu, mas nessas horas acho que nós mulheres somos mais frágeis e nos sentimos indefesas. Por isso decidi buscar ajuda. Só não posso arriscar perder o meu green card ou ir para a prisão”, disse a brasileira, que ainda deve três mil dólares ao porto-riquenho. Ela está com medo de que ele não apareça na entrevista final na imigração.

O drama de N.R. é mais comum do que se imagina dentro da comunidade brasileira no sul da Flórida. O advogado Max Whitney, por exemplo, se depara com pelo menos um caso deste tipo a cada semana em seu escritório, em Deerfield Beach . “As pessoas me procuram já em situação desesperadora. Se tivessem pedido o conselho antes de tomar a decisão pelo casamento fraudulento, certamente a resposta seria para que evitassem tal procedimento, que é 100% contra lei. Estamos falando de um crime federal”, afirmou Max, que recusa qualquer cliente nessa situação, pois o advogado pode ser também responsabilizado pela fraude.

Ele ressalta que o imigrante é sempre a parte fraca nesta equação, até mesmo do ponto de vista jurídico: “Os americanos costumam ganhar imunidade em troca da denúncia de detalhes do esquema e, muitas vezes, saem ilesos do processo. Portanto, o indocumentado precisa saber que está assumindo uma relação de dependência, que com a demora na execução dos papéis pode durar até quatro anos, e o final pode não ser feliz”, alertou o advogado.

Mulheres, as vítimas mais comuns

Realmente, de acordo com estatísticas do ICE, mais de uma centena de pessoas envolvidas com o rentável business dos casamentos por conveniência foram presas e deportadas nos últimos dois anos. Uma delas, a russa Yuliya Kalinina, de 25 anos, pode pegar até 10 anos de prisão, no julgamento que será concluído no dia 28 de abril, para depois enfrentar o processo de deportação. Ela apareceu no Craiglist (uma espécie de site de classificados) procurando um marido cidadão americano em troca de 15 mil dólares. O anúncio foi respondido pelo californiano Benjamin Adams, cuja pena não deve ultrapassar 364 dias de prisão domiciliar e a prestação de serviços comunitários. A russa, no entanto, aguarda o julgamento atrás das grades.

Aqui mesmo em Miami, uma cubana, residente legal nos Estados Unidos, foi presa sob acusação de ter se casado com pelo menos 10 imigrantes diferentes, entre 2002 e 2006. Eunice Lopez está respondendo a processo por bigamia e o serviço de imigração apurou que nenhum dos indivíduos com quem ela se casou tinha status regularizado no país. No entanto, mesmo assumindo a culpa na audiência preliminar, a cubana pagou fiança de 18 mil dólares e está em liberdade, enquanto que alguns dos seus maridos já foram forçados a retornar aos seus países de origem.

“Os casamentos por conveniência representam uma séria ameaça à segurança nacional, pois podem dar legalização a possíveis terroristas e criminosos de alta periculosidade”, argumentou o agente Anthony Mangione, do ICE, justificando a preocupação cada vez maior da polícia de imigração com relação a estes casos. Ele lembrou que há poucos meses um grande esquema envolvendo uniões fraudulentas foi desmontado na Califórnia: a operação ‘Newlywed Game’ resultou na prisão de 44 chineses e vietnamitas.

As autoridades imigratórias têm prestado especial atenção a casamentos que envolvam noivos com grande diferença de idade ou de nível intelectual. “O ICE já reparou que há um padrão neste tipo de fraude e tem segurado na malha fina quem corresponde ao perfil”, assegura Max. Isso, infelizmente, tem provocado atrasos nos procedimentos daqueles casais de etnias diferentes que realmente estão apaixonados e querem se casar de verdade.

Mulheres, as vítimas mais comuns

Não há dados oficiais, mas as mulheres são, sem sombra de dúvida, as personagens mais comuns dos dramas que envolvem as uniões fictícias, apenas com o objetivo de obtenção de documentos. O advogado Max Whitney, que convive mesmo que indiretamente com essa realidade, arrisca que elas respondem por 70% dos casamentos por conveniência na condição de imigrante.

A psicóloga brasileira Karina Lapa, da South Florida Counseling Agency, tem a explicação para este fenômeno. Para ela, trata-se de um fator cultural: “Os homens costumam arrumar um jeito para tudo, isso sem falar que a sociedade sempre os favorece. As mulheres, ao contrário, têm mais dificuldades de conseguir o que desejam. Neste caso específico, elas encontram barreiras para entrar no mercado de trabalho e, por conseqüência, são normalmente excluídas da lista dos beneficiados pelo visto de trabalho como profissionais qualificados. Daí recorrem a outros meios, entre eles o casamento por conveniência”, atesta Karina. Ela não descarta ainda que algumas delas também se envolvam nessa fraude com um desejo inconsciente de encontrar um ‘salva-vidas’.

Marido-cidadão’

Karina recorda que já recebeu em seu consultório várias mulheres nessa situação, ou seja, pressionadas pelo que chamou de “marido-cidadão”. Uma delas, por exemplo, foi abandonada pelo ‘cônjuge’ semanas antes da entrevista na imigração – perdeu a chance do green card e ainda o dinheiro pago antecipado. “Nunca é demais frisar que o crime é cometido pelas duas partes, mas as mulheres ficam sempre mais vulneráveis, até porque não falam o idioma e perdem facilmente a auto-estima. Daí estão mais sujeitas à pressão psicológica”, explicou.

Apesar de rejeitar qualquer medida ilegal, Karina entende a atitude de quem busca essa saída: “Elas ficam entre a cruz e a espada, mas poderiam usar o dinheiro pago ao marido de aluguel para encontrar um recurso para a legalização”, sugeriu. Nesse ponto, o melhor a fazer é procurar um advogado especializado, que certamente apresentará o melhor caminho a ser seguido.

Suporte social

Mas… e para quem já se meteu nessa roubada?? “O fundamental é a mulher entender que não pode ficar isolada. Vale a pena procurar suporte social, seja com os amigos, ou numa igreja ou mesmo em centros comunitários, até para descobrir quais são os reais direitos nessas siuações”, ensina Karina. É isso que tem servido de suporte à carioca N.R., que está longe da família há mais de 10 anos. “Só estou agüentando a situação porque tenho o meu trabalho e muitos amigos, senão já tinha ido à loucura com tanta pressão”.

E ela, apesar dos problemas, ainda consegue manter o bom-humor: “Outro dia falei com a minha mãe pelo telefone e ela lembrou que, em maio, vou comemorar bodas de papel. Mal sabe ela que o casamento foi, na verdade, para conseguir o papel”.

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