Histórico

Boatos assassinos

Jorge M. Nunes

No mesmo plaza onde fica a redação do AcheiUSA um capixaba boa-praça toda sexta-feira monta num canto seu negócio de lavagem de carros. Estaciona por ali uma van e dela tira todo o equipamento que usa para deixar reluzentes os carros da freguesia, feita de comerciantes e funcionários das lojas do shopping. Eu também costumava deixar o carro com ele para o serviço, até que descobri que a minha concessionária lavava o meu carro de graça, com direito a cafezinho, água gelada e TV enquanto espero pelo serviço.

Alfredo, o lavador de carros (o nome dele não é esse, mas vamos chamá-lo assim daqui por diante), juntou uma considerável poupança nos EUA, suficiente para adquirir alguns imóveis no seu Espírito Santo natal e sonhar com uma aposentadoria tranquila mais tarde em Guarapari. Por enquanto, ele segue lavando de quatro a cinco carros por dia a 35 ou 40 dólares cada, dependendo da cara do freguês.

Entre uma caprichada e outra no brilho, Alfredo gosta de aparecer com notícias e casos escabrosos da comunidade, principalmente quando o assunto é alguma batida da imigração, a deportação de algum conhecido sem documentos, ou qualquer crime envolvendo brasileiros.

Um dia, Alfredo me acenou nervoso enquanto eu passava ao lado de seu lava-carros improvisado e me deu uma informação bombástica.

Dizia que tinha recebido uma mensagem de texto de um sobrinho que tinha ouvido de um amigo que a imigração estaria dando uma batida num condomínio muito popular entre os brasileiros, em Deerfield Beach. Aflito, Alfredo contava detalhes: já havia um ônibus cheio de brasileiros presos, a rua estava fechada pela polícia, os carros sendo parados e revistados, pessoas estavam fugindo desesperadas a pé pela highway I-95 etc. etc. Tentei acalmá-lo, dizendo que eu passara mais cedo pela área e não tinha visto nada de estranho, que batidas daquele tipo não eram comuns e que tudo provavelmente não passava de um boato. Mas Alfredo não se convencia de jeito nehum, e implorava para que eu fosse verificar o que estava acontecendo. Por via das dúvidas, segui para o tal condomínio. Afinal de contas, se verdadeira, a tal batida renderia uma boa história para a edição daquela semana do AcheiUSA.

Como esperado, encontrei tudo normal no tal condomínio. A coisa não passava mesmo de um boato, provavelmente disparado pela presença de um carro da imigração estacionado em frente a um restaurante brasileiro próximo, onde alguns agentes almoçavam tranquilamente e sem incomodar ninguém.

Voltei para acalmar Alfredo e, em vez de ir até o seu lava-carros acenei de longe, fazendo sinal negativo com as mãos, dando a entender que não havia nada no local.

Mas Alfredo respondeu com um grito: “Ah, já foram embora? Que bom!”

Ele preferiu ajustar o boato à minha negativa em vez de acreditar que na verdade não havia acontecido nada no tal condomínio ou em qualquer outra parte de Deerfield Beach.

O episódio serviu para me confirmar a suspeita de que há uma tendência em geral nas pessoas para acreditar mais nos boatos e fofocas que na verdade. Esses dois geralmente são muito mais excitantes que a realidade e ainda conferem um certo status de bem-informado para o autor e para quem os espalha. No caso de Alfredo, as consequências do boato não foram das piores, e acabaram só rendendo uma piada.

Infelizmente, não foi o caso do boato espalhado pela internet que causou o brutal linchamento de uma mulher na cidade paulista do Guarujá. Fabiane Maria de Jesus, de 31 anos, foi barbaramente espancada e morta na semana passada por uma multidão ao ser confundida com uma personagem que nem mesmo existe. Uma página da internet alertou aos moradores do Guarujá sobre uma certa mulher que aliciava e assassinava crianças em rituais de magia negra, inclusive divulgando um retrato falado da tal mulher, fato que não consta em nenhum registro policial e era totalmente falso. Religiosa e frequentadora de uma igreja no mesmo bairro onde ocorreu o linchamento, Fabiane era casada e tinha duas filhas, cujos retratos estavam dentro da Bíblia que segurava enquanto era espancada.

O caso mostra o extremo a que podem chegar as consequências de um simples boato, principalmente em tempos de internet, onde todo mundo divulga na rede o que quiser. Se por um lado o jornalista profissional, mal ou bem, tem como missão reportar a verdade dos fatos por força de sua profissão, alguém que administra uma página popular na internet ou uma conta no Facebook não tem o menor compromisso com qualquer credibilidade, e divulga a informação que quer e que lhe convém.

Daí a proliferação de notícias falsas que se veem pelas redes sociais, com informações que são espalhadas com a intenção deliberada de beneficiar de alguma forma o seu propagador. Junte-se a isso o fato de que boa parte das pessoas prefere acreditar menos na verdade que nos boatos que lhes convêm, e as notícias falsas se espalham e se reproduzem com uma velocidade impossível de se acompanhar e desmentir. As consequências desse tipo de fraude podem ser tão graves quanto o bárbaro linchamento de Fabiane, causado simplesmente pela propagação irresponsável de uma informação completamente falsa.

Por isso, toda vez que me deparo com uma informação falsa sobre qualquer assunto, seja numa declaração qualquer ou num aparentemente inocente meme postado nas redes sociais, meu ato reflexo é buscar desmenti-la imediatamente com os fatos, mas na maioria das vezes o esforço é em vão, já que muitos veem a notícia falsa mas poucos prestam atenção no seu desmentido.

A internet e as redes sociais trouxeram um poder inédito às pessoas. Com esses recursos, cada um de nós acabou se tornando uma mídia em si, um pequeno veículo de comunicação cujas informações que divulgamos ou reproduzimos podem se propagar tanto quanto as veiculadas por uma grande mídia (estão aí os vídeos ‘virais’ para provar isso). Para usar com sabedoria esses novos recursos é preciso tratá-los com responsabilidade, sabendo que uma informação aparentemente inofensiva, mas falsa, pode ter consequências imprevisíveis, como o boato que levou Fabiane à morte.

A internet e as mídias sociais ampliaram o poder das pessoas de manifestarem livremente suas ideias por aí, o que implica também o aumento da responsabilidade no uso desse poder. É bom verificar sempre a fonte e a origem da informação que espalhamos pelas mídias sociais. O boato, ainda que sedutor, é capaz de matar, como no triste caso de Fabiane.

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