Histórico

Prêmio AcheiUSA de Literatura

Nem todos os sorrisos dizem sim

Quando a moça olhou no relógio já eram 6:00. Por fim, conseguiu chegar ao aeroporto na hora que planejou, três horas e meia antes de seu vôo partir. A vontade de esparramar-se numa poltrona era grande, precisava descansar, afinal, era um stress acumulado em 16 anos de vida. Quase não podia crer que estava conseguindo. Quase, porque seus pés ainda tocavam o seu solo brasileiro tão amado, entretanto, algo maior que o amor à pátria a impulsionava a partir, aquele a quem julgava ser o amor de sua vida, Wilson. Enquanto seus pensamentos buscavam o brilho dos primeiros raios de sol daquela manhã de sábado o celular tocava insistente na bagagem de mão:

Alô? Sim! Consegui meu amor! Já estou aqui. Tudo certo! Pouca bagagem, nada que venha a levantar suspeita que sou apenas uma turista feliz com suas férias. Sim, preciso anotar o seu novo endereço, que também será o meu. Diga-me

Não, não precisa! É perigoso! Eu vou te buscar, já te prometi!

Wilson, por favor, eu preciso de um endereço. Onde já se viu ir para um lugar, outro país, sem um endereço? Ao menos para prevenir…vai que acontece alguma coisa diferente do combinado.

Sim, tudo bem. Anote, mas tenha cuidado, quando fez sua entrevista para o visto você deve lembrar que disse que viria para um hotel e não conhecia ninguém nos EUA. Então, por favor, guarde bem esse endereço, bem escondido. Beijos, enfim te verei mais tarde! Nem acredito

Wilson estava feliz, percebia-se em sua voz. Também não estava acreditando que sua noiva brasileira enfim colocaria os pés nos Estados Unidos da América entrando com dignidade pela “porta da frente”, como ele gostava de dizer, com visto. Com pressa, Iracema destacou o endereço que anotou em seu bloquinho amarelo, aqueles que grudam mas não grudam muito, seu sticky notes (precisava se acostumar com o idioma inglês, seu calo maior). Amava espanhol, estudava espanhol, de espanhol? Entendia muito, chegou até mesmo a dar aulas e sua ansiedade com a dificuldade do idioma inglês e a viagem eram indisfarçáveis. Nervosamente guardou sua anotação na capa interior de seu passaporte, crendo que ali era um local seguro.

Milhões de pensamentos atravessavam sua mente, qual seria a sensação quando chegasse? O Aeroporto de Miami é gigantesco, isso era o que sempre Wilson lhe dizia, tantas pessoas, tantos destinos. Olhava para a sua bagagem ali no carrinho ainda no aeroporto internacional de Guarulhos, duas malas pretas em canvas com acabamento cinza externavam seu bom gosto e discrição. Quase não conseguia acreditar que toda a sua vida de 37 anos estava ali, reduzida a duas malas. Como conseguira a mágica nem ela mesmo sabia.
De seus livros? Sim, ela sentiria muita falta. Das fotos de familia? Com certeza muito mais. Também de sua gente, dos seus sabores preferidos. E sentiria muita falta de algo que esperou tanto e não levaria na bagagem, isso sim era o mais dolorido, pois o tão sonhado vestido de noiva ficaria para trás. Ouviu de muita gente contar que algumas brasileiras foram deportadas só porque tinham um vestido de noiva na bagagem de turista. Nunca chegou a confirmar se tal fato era verdade ou não, assim, ela preferiu não arriscar. O seu vestido tinha sido feito por sua tia Marina, a tia morrera sem vê-la casar com Wilson e, que Deus a tivesse em bom lugar, pois foi melhor assim, ela morreria mesmo de qualquer maneira pelo desgosto de não ver a sobrinha vestida nele. Afinal, como Iracema explicaria um vestido de noiva na bagagem? Seus pensamentos foram interrompidos:

“…Senhores passageiros com destino a Miami vôo 321 do horário das 09:30 dirijam-se ao portão de embarque”

Era a primeira chamada. Então resolveu apressar-se. Coisa de mineiro, povo que não gosta de se atrasar, nem de ser chamado à atenção. Nem se dava conta, mas era o que estava chamando bastante para si: Atenção. Escolheu um vestido cáqui, de corte reto e linhas clássicas, um lenço marrom com detalhes abstratos em vermelho, discreto, de seda, que ela o prendeu sob a gola do vestido, solto ao corpo, também tinha um cinto marrom de plaquetas de ferro delicadas com detalhes em pequenas pedrarias e missangas vemelhas, sandálias de couro marrom com tiras delicadas deixavam suas pernas bem torneadas ainda mais elegantes. As unhas bem feitas, pintadas de vermelho contrastavam com sua pele de cor branca. O nervosismo dos últimos meses a fizera emagrecer, e esses 5 kilos a menos tornaram impossível esconder as suas curvas bem distribuídas, uma brasileira de cintura fina e quadris largos, um visual discreto e elegante, mas nunca imperceptível como acreditava estar.

As horas passaram rápido. Quando se deu conta, já estava procurando sua poltrona, F16, na janela, o que não era um segredo, pois desde criança tinha paixão por janelas, da casa da avó, da casa da mãe, do seu quarto, quando atrás da cortina ela via Wilson passar todas as manhãs para trabalhar.

Quando pensou em relaxar e enfim dormir após todos os passageiros se acomodarem e já tentando cochilar, surge uma pergunta inesperada:

A sra. Gosta de feijão?

A pergunta lhe fez duvidar se já estava dormindo ou acordada.

Eu?

Sim moça, por favor, me diga, gosta de feijão?

Quando prestou um pouco mais de atenção, era uma menina ao seu lado. Uma morena extrovertida ao extremo e muito espontânea. Disse se chamar Sofia, ter 11 anos e ser baiana, de Salvador.

Olhe, eu gosto muito de feijão sim.

Nesse momento, ela percebeu que a menina fazia uma cara de decepção e, para ajudá-la emendou a conversa:

Sabe, eu gosto de feijão, mas tenho uma irmã que detesta!

Os olhos da menina brilharam:

Verdade? Então existem mais pessoas no mundo que não gostam de feijão?

Sim, claro! Muitas pessoas não gostam de feijão.

Minha mãe diz o tempo todo que tenho que comer feijão. E meus pais estão preocupados porque nessa viagem de férias para Miami e Orlando não irão encontrar feijão com muita facilidade. Mas para mim, será ótimo! Já pensou um país que não sou obrigada a comer feijão?
As duas começaram a rir. Ali começava um curiosa amizade. A conversa se desenrolou nos mais diversos assuntos, a menina desafiava a tagarelice até mesmo de Emília, do Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato. Em dado momento, outra pergunta à queima-roupa, sem muitas explicações anteriores do porquê:

Iracema, você não acha que o dia do descobrimento do Brasil, 22 de Abril, também deveria ser feriado?

Claro que sim! Afinal é uma data muito importante.

Sim! É o dia do meu aniversário!

Nossa! Que legal Sofia! Também é o dia do meu aniversário!

Sofia muito surpresa não queria acreditar, assim foi preciso Iracema abrir seu passaporte e mostrar que realmente nasceu em 22 de abril.
Sofia ficou deslumbrada com a descoberta, rapidamente vira-se para as duas poltronas atrás e grita:

Mainha!!! A Iracema também nasceu dia 22 de abril!!!

A mãe sonolenta, visivelmente envergonhada ao lado do marido e pai de Sofia, tentava se desculpar da alegria esfuziante da menina. Desculpar-se? De nenhuma maneira, eles deveriam agradecer por ter uma criança tão espontânea como filha.

E a conversa foi se desenrolando sob os mais diversos temas. Em outro momento, após horas e horas de viagem, quando nada fazia Sofia calar a boca, atravessavam os Andes, uma vista exuberante! Iracema estava quase sem fôlego com aquela visão…Montanhas gigantescas, pareciam de brinquedo…como descreveu Sofia: “Parecem bolo de chocolate com cobertura de glacê branco por cima

Tinha razão. A neve acumulada em cima das cordilheiras era algo de tirar o folêgo. Um presente da natureza. Sofia dormiu, enfim, depois de muito tagarelar. Enquanto os pensamentos de Iracema divagavam ainda nas cordilheiras ela foi interrompida:

Sra, permiso, por favor, necesito de su atención. (Trad.: Senhora, com licença, por favor, eu preciso de sua atenção).

Era a comissária de bordo. Com um papel e uma prancheta em suas mãos.

Sí, ¿qué necesitas, por favor? (Trad.: Sim, por favor o que precisa?)

Tiene que rellenar esta hoja, por favor. (Trad.: A sra. Precisa preencher essa folha, por gentileza).

Sí, voy a rellenar, y después, ¿Qué hago? (Trad.: Sim, vou preencher, mas depois, o que eu faço?)

Dámela a mí, por favor. Gracias. (Trad.: Entregue-a para mim, por gentileza.)

A essa altura, Sofia acordou e, de olhos grudados no diálogo dispara:

Puxa Iracema! O que foi que ela disse?

Bem, ela falou em espanhol. Trouxe um papel para eu preencher, que são informações úteis para quando sairmos do vôo, acredito que vão usar no desembarque, junto à imigração.

Eu estudo inglês faz um tempo, mas espanhol comecei faz pouco tempo, não entendo quase nada. Eu não gostava de espanhol.

Igual a feijão?

Não, menos. O feijão ganha de todos os meus “detestados”.

E novamente desenvolve-se o assunto, dessa vez, sobre a língua espanhola. A pequena Sofia de 11 anos às vezes parecia um adulto
com suas reflexões, e, por vezes, apenas uma criança de 6 anos quando falava dos seus “detestados”.

Nossa Iracema! Você entende muito de espanhol! Minha professora de espanhol adoraria te conhecer! Ela é lá de Salvador mesmo. Ela disse que sonha em vir para os Estados Unidos, para Miami, porque aqui se fala muito espanhol e ela sonha em se casar com um americano que fale espanhol, isso eu ouvi outro dia, quando ela disse para outra professora sua amiga, ela pensou que era um segredo, que ninguém ia saber, mas eu “tava” detrás da porta e escutei tudo. Imagina?

Nossa! Eu imagino

Sabe Iracema, você tem um sorriso tão lindo! Deveria sorrir mais vezes!.

Obrigada Sofia!. Mas sou tímida, não sou de muito riso.

Eu sou muito sorridente sabe? Só que tem um problema com os meninos, que eu detesto!

Igual a feijão?

Sim! Detesto igual a feijão.

Como assim, que problema é esse?

O problema é que, quando nós meninas sorrimos muito para os meninos, eles pensam que estamos dizendo: SIM.

Não entendi Sofia, desculpe, pode explicar melhor?

Iracema, eu sei que sou criança. Mas não sou burra. Burros mesmo são os meninos. Porque preste atenção, todas as vezes que eu não quero brigar com um menino, eu dou um sorriso. Então eles ficam mais calmos e desistem de brigar. Sempre dá certo sabia?. Eles não sabem, mas nem todos os sorrisos dizem sim, só que eles pensam o contrário.

Sabe de outra coisa Iracema? Eu vou fazer a minha professora conhecer você, posso anotar o email da minha professora de espanhol e te dar? Ela vai ficar feliz! Espere!

Nesse momento, Sofia tira de sua bolsinha de urso de pelúcia, a que não desgrudava dela um só momento, um bloquinho amarelinho, daqueles que grudam, mas nao grudam muito.

Você também usa esse bloquinho?

Sim Iracema! Adoro stick notes tenho de todas as cores, mas gosto mais do amarelo.

Nesse momento, Sofia anota o email de sua professora de espanhol:

Ilovespanish1974@hotmail.com.

Engraçado Sofia, o email está em inglês e ela gosta de espanhol?

Sim, ela também é minha professora de inglês, mas eu acho que inglês ela detesta. Ela gosta mesmo é de espanhol.

Sofia anotou e fez questão de guardá-lo para Iracema, na sua bagagem de mão.

Subitamente Sofia recosta-se na poltrona, disse estar cansada, com sono. Iracema se surpreende, pois até aquele momento Sofia parecia nunca se cansar. Enfim, Sofia se rende ao cansaço e dorme.

Iracema não ficou sem companhia. Seus pensamentos eram seus fiéis companheiros que sequer a deixavam dormir. Enquanto a conversa de Sofia lhe distraía e divertia tanto, seus pensamentos lhe aterrorizavam. Será que realmente estava com cara de turista? De alguém que viria apenas para fazer compras em Miami, com seus dólares contados? E se o maquinário da imigração conseguisse ler, por exemplo, seus pensamentos? Saberiam que sua intenção era outra. Sua passagem de regresso ao Brasil dali a 6 dias jamais seria utilizada. Iracema viera para ficar. Para casar-se com Wilson, o grande amor da sua vida por quem esperou por longos 16 anos. Wilson, já era cidadão americano, iriam casar-se depois de algumas semanas que ela estivesse em solo americano. Poucas pessoas sabiam disso, haviam guardado segredo. E seu maior fantasma seria chegar em solo americano e ser entrevistada pela imigração. Seu consolo era saber espanhol e, Wilson, sempre lhe acalmava dizendo que a língua espanhola era o segundo idioma e ela não precisava se preocupar.

Já era noite densa. Muitas horas haviam passado, 10 horas de vôo ou pouco mais. Estavam todos visivelmente cansados, as luzes se acenderam, os avisos de arrumar as poltronas, colocar os cintos de segurança, a aeronave iria pousar.

Sofia acordou, foi passear no avião, conheceu as comissárias e decidiu fazer novas amizades. Encontrou amiguinhas na parte dianteira do avião, acenava de longe para a amiga Iracema. O avião pousou e quando retiraram as bagagem e se dirigiam para a saída, Sofia apresenta Iracema às novas amigas, ainda lhe dá um abraço apertado e recomenda que não deixe de enviar um email para sua professora de espanhol.

Iracema era a única pessoa que parecia não ter a menor pressa para sair do avião. A sua calma gigantesca era uma farsa para tentar esconder o vulcão de dúvidas que insistia em borbulhar no mais interno e profundo esconderijo do seu coração e uma pergunta insistente lhe atravessava a mente: Será que vou conseguir disfarçar? Sempre teve consciência de suas qualidades e defeitos. Mentir e disfarçar nunca foram suas melhores habilidades. Coisa de família mineira, que não gosta de deixar filho mentir e se dar bem. Foi acostumada e ensinada durante toda uma vida que sofreria as consequências dos seus erros. E ao mesmo tempo, se perguntava se realmente estaria errando, porquê? Afinal, era uma turista, viria passear. Ou não? No fundo de seus pensamentos ela sabia que não, ela não era uma turista, apenas. Escondia a verdade de uma noiva apaixonada que sagazmente entrava no país para enfim casar-se com o homem da sua vida, Wilson. Assim, ela pensava tudo isso enquanto deixava a fila passar e retirava cuidadosamente todos os papéis da bolsa, e deixou o passaporte bem visível. Enquanto aguardava sua vez, a sua vida repassava em sua mente, como em um filme:

Lembrava de Wilson, de que ficaram por 7 anos sem se ver enquanto ele era imigrante ilegal nos EUA. Seu visto era de turista, como o dela. Mas depois de 7 anos, por fim, Wilson conseguiu sua residência dignamente através de trabalho duro, muito duro e dedicado a uma companhia que o acolheu e até chegou a ser gerente e depois de mais 5 anos a tão sonhada cidadania. Motivo de orgulho para toda família nas Minas Gerais. Rapidamente tirou seus pensamentos de Wilson, olhava em volta e se perguntava, será que alguém estaria lendo seus pensamentos? Havia camêras de vídeo por toda parte, ela tentava disfarçar seu gigantesco nervosimo. Sempre amava os filmes policiais americanos, principalmente os que culminavam em alguma prisão ou julgamento. Ficava encantada quando policiais retiravam as algemas dos bolsos e colocavam em algum bandido, arrastando-o e dizendo Você tem o direito a permanecer calado e, tudo o que disser será usado contra você mesmo.

Entretanto, a sensação de estar num ambiente igual ao dos filmes e ser a protagonista lhe assombravam a todo momento, quando chegou a sua vez:

Lady, please, you’re the next person. (Trad.: Senhora, por favor, você é a próxima)

Seu coração disparou e um suor gelado começava a descer-lhe pelas costas. Só lembrava de algumas frases em inglês decoradas e, como um herói que arranca forças de onde não as tem tentou dizer com naturalidade:

Please, do you have somebody else speak spanish? (Trad. : Por favor, você tem alguém que fale spanhol?)

Prontamente o senhor começou a falar espanhol. Orientou-lhe a passar todas as bagagens pelo aparelho de raio X. Também a orientou a tirar seus sapatos. Tudo passou lentamente pelo raio X. O funcionário acenou com a cabeça para que retirasse seus pertences de volta.
Iracema estava com o coração disparado de ansiedade, pois desejava que aquele momento acabasse logo. Mal conseguia controlar a respiração. Logo chegou a sua vez de ser entrevistada pela imigração. Dirigiu-se ao balcão. De longe, um funcionário de preto e de coldre com armas lhe fitava de cima a baixo. Era policial agente da imigração. Estava ali formalmente, como muitos outros. Ela esboçava um sorriso tímido, o melhor que conseguira em meio ao turbilhão de pensamentos que assombravam sua cabeça. Ele aproximou-se, já foi falando em espanhol e lhe pediu para preencher um papel com seus dados. Ela o preencheu com cuidado e uma calma que pensava aparentar. Só sentia forças para terminar de preencher o documento e respirar. O funcionário a olhava firme, olhos nos olhos. Ela deixou a prancheta com o papel preenchido onde ele determinou, numa espécie de balcão lateral, que serviria de apoio para organizar seus documentos e apresentá-los diretamente ao oficial da imigração. Voltou seu olhar para a “última porteira”. Wilson sempre lhe dizia, “Meu amor, a última porteira é a mais difícil, você fica de pé, frente a frente com os americanos, eles olham tudo, seus documentos, fazem perguntas, juntam todos seus papéis e o passaporte e, se estiver tudo certo, e também não desconfiarem de nada, eles entregam seus pertences e te dizem: Welcome to Miami!

Cada passo que Iracema dava em direção ao funcionário da imigração que iria entrevistá-la, numa espécie de guichê com roleta na última porteira pesava muito, suas pernas quase nem se moviam, deviam pesar 200 quilos cada uma, talvez o peso da consciência tenha escorregado para as pernas, ela sentia que as batidas do seu coração conseguiam abafar até mesmo o barulho do salto das sandálias e depois de uns 5 passos, lá estava ela, frente a frente com o oficial.

Buenas noches Señora,ya sé que prefiere hablar español. (Trad. Boa noite senhora. Já sei que prefere falar em espanhol.)

Ela estremeceu e nem sabia que poderia estremecer ainda mais, pois nem mesmo alguém com mal de parkinson tremeria tanto.

Buenas noches Señor, por favor, ¿Qué necesitas? Todo está listo. Mis papeles, el pasaporte. ¿Puedes, por favor, agarrálos? Muchas gracias. (Trad.: Boa noite senhor, tudo está pronto. Meus documentos, meu passaporte, pode, por gentileza segurá-los? Obrigada.)

Me encanta mirar que hablas bien el español!, muchos turistas brasileños llegam a cá y no saben siquiera saludarnos. (Trad.: Estou feliz que fale bem espanhol, pois muitos turistas brasileiros vêm para cá e não sabem sequer cumprimentar-nos)

Iracema teve um súbito pensamento de relaxar um pouco em meio aquela conversa aparentemente gentil e despretensiosa, mas…se fosse uma armadilha? Muito cautelosa e com o coração em batidas aceleradíssimas, respondeu:

Sí, es la verdad. Muchos brasileños no se prepraran para venir de vacaciones. Ellos no se dan cuenta de la importancia de saber hablar español, por lo menos, ya que muchos también no hablan inglés (Trad.: Sim, isso é verdade. Muitos brasileiros não se preparam para sair de férias, eles não percebem a importância de saber falar espanhol, pelo menos, já que muitas vezes também não falam inglês.)

Por supuesto! Es muy dificil comunicarse cuando la gente no comprende nuestro idioma (Trad.: Certamente! É muito difícil se comunicar quando as pessoas não compreendem nosso idioma).

Miro que es soltera? ¿Verdad? (Vejo que é solteira, verdade?)

Sí, lo soy. (Sim, eu sou.)

¿No tiene ninguna amiga a cá en Miami? (Trad.:Você não tem nenhuma amiga aqui em Miami?)

Nesse momento, foi difícil responder a pergunta. O coração de Iracema já estava perto da garganta, respirar e falar eram tarefas quase humanamente impossíveis. Ninguém contou para ela que se fariam tais perguntas. E agora? Pensou rápido, não ia mentir, afinal, amigas mesmo, ela não tinha, o que tinha era um noivo

No, no tengo amigas en Miami. (Trad.: Não, não tenho amigas em Miami.)

Seria muy bueno tener amigos, podrías volver a cá después y desfrutar más en otras vacaciones, porque quedará encantada. ¿A usted le gustaria hacer amistades? (Trad.: Bom, deveria ter amigas, para voltar aqui depois e aproveitar melhor em outras férias, porque vai gostar muito. Gostaria de fazer amizades?)

Tremendo muito mais ainda, respondeu:

Bueno, creo que no será posible hacer muchas amistades por aqui, tendré poco tiempo en la ciudad.(Trad.: Bom, eu acredito que não será possível fazer amizades aqui, porque eu terei pouco tempo na cidade.)

Nesse exato momento, o funcionário juntava todos seus documentos e, de repente, abre seu passaporte de novo, justamente na parte em que estava guardado o chamativo papel amarelo. Iracema lembrou-se de que no aeroporto em São Paulo, insistira com Wilson para que lhe desse o endereço, ele disse que era perigoso, que era melhor não ter nada que demonstrasse conhecer alguém em Miami, muito menos ter um noivo. O funcionário leu o que estava escrito, olhou forte nos olhos de Iracema, olhou para o papel de novo e com olhar determinado a fazer algo perguntou:

¿Señorita Iracema Lopes, essa es la suya dirección? (Trad.: Este é seu endereço?)

Iracema não sabia se morreria lentamente ou de ataque fulminante, se pudesse escolher, escolheria a segunda maneira, ainda tinha esperanças de descer chão abaixo, pois o solo parecia derreter-se sob seus pés, também tinha dúvidas se já apresentava as mãos para ser algemada, ou então se esperaria calada a ordem de prisão, imediatamente lembrou-se dos filmes e tudo o que falasse seria usado contra ela mesma, assim, no meio dessa tormenta conseguiu forças para respirar e sobreviver ficando de boca fechada, petrificada de medo. Enquanto o funcionário lhe fitava, com a mão esquerda segurava o passaporte, e a mão direita a desceu bem abaixo do balcão, onde ela não via o que ele ia fazer, pegar alguma coisa? Iracema agora tinha certeza era o par de algemas – tentava segurar as mãos junto ao corpo, porque percebia que dessa vez iria cair e desejava muito já cair morta. Ele retirou um copo com água e o bebeu calmamamente sem tirar os olhos de Iracema e, disparou:

Mire, puedo quedarme con su dirección?Porque usted dijo que le encantaria hacer nuevas amistades (Trad.:Veja, posso ficar com seu endereço, porque você disse que gostaria de fazer novas amizades.)

Iracema, totalmente sem forças apenas lembrou de acenar a cabeça dizendo que sim. Porque se falasse perderia o restante de ar nos pulmões que ainda tinha. Enquanto se esforçava para manter o que julgava ser ser último suspiro, o funcionario destacava o sticky notes amarelo e sorrindo declarou:

Su direción electrónica me encanta! llovespanish@hotmail.com. Soy americano, hijo de cubanos. A mí también me encanta el español. Creo que haremos buena amistade, ¿Verdad?(Trad.: Gosto muito do seu email, Ilovespanish@hotmail.com. Eu sou americano, filho de pais cubanos. Eu também amo o idioma espanhol. Creio que seremos bons amigos, não é mesmo?)

Iracema disparou a rir, um riso nervoso, milagroso, curador de todos os males que o medo e o pânico podem causar, pois o funcionário havia destacado o papel amarelo “sticky notes” no qual a menina Sofia anotou o email de sua professora de espanhol, colocando o papel em cima do anterior que Iracema havia posto, ou seja, aquele com o endereço de Wilson ainda no aeroporto de Guarulhos, seu sorriso franco, aberto, quase gargalhando iluminou seu rosto fazendo o funcionário da imigração quebrar todos os protocolos, (pois paquerar uma turista era algo inconcebível) afinal, Iracema havia se preparado para tudo, menos para ser cortejada e enquanto Iracema não continha seu riso, ele disse:

Uahau! Que sonreísa bonita tiene! Por supuesto vamos a desarrolar una gran amistad!(Trad.: Nossa! Que sorriso bonito você tem! Certamente vamos ser grandes amigos!)

Gracias! (Trad.: Obrigada!)

Bien a usted Sta. Iracema Lopes, sólo puedo decir: Welcome to Miami! Qué tenga buenísimos días de vacaciones! (Trad.: Bom, Srta. Iracema, somento posso te dizer uma coisa: Seja bem vinda a Miami, desejo que você tenha ótimos dias de férias!)

Muchas Gracias, ¿Sr. ..? (Trad.: Muito obrigada, Senhor…?)

Miguel Gonzalez, pero, se le encanta, puedes llamarme de Miguelito. Gracias. (Trad.: Miguel Gonzalez, mas, se você preferir e gostar, pode me chamar de Miguelzinho).

Iracema recolheu seus pertences. E saiu, ainda sem conseguir conter o riso e acertar o passo. Acenou com a mão gentilmente para Miguelito, dando tchau e sorrindo muito. Lembrava de Sofia, aquele anjinho baiano e falante de 11 aninhos cheia de sabedoria que acabou de salvar sua vida colando seu sticky notes bem em cima do seu anterior, na capa interna do seu passaporte, com o email de sua professora, (que amava espanhol e sonhava se casar com um americano/hispano).

A sensação de chegar aos Estados Unidos estava sendo algo extremamente marcante, talvez comparada a experiência de alguém que morre e nasce de novo em poucos minutos, alguém que vai da porta do inferno ao céu em segundos e, por pura bondade divina, um anjo cruza antecipadamente seu caminho e lhe salva do que estaria por vir. O que estaria por vir então?

Para Iracema, de agora em diante, Wilson, que já lhe aguardava ansiosamente no saguão do aeroporto. E para o funcionário da imigração e a professora de espanhol baiana, só o tempo seria capaz de dizer. Pois para os homens, segundo a pequena Sofia “…todos os sorrisos dizem sim”.


3º LUGAR

A vida nova nos Estados Unidos tem sido uma fonte de inspiração para a carioca, criada em São Paulo, Lúcia Santos, de 47 anos. Recém chegada do Brasil, ela que é formada em Letras pela Universidade Metodista de São Paulo, teve seu conto “Nem todos os sorrisos dizem sim”, escolhido como o terceiro melhor do IV Prêmio AcheiUSA de Literatura.

Ela conta que foi com muito incentivo do marido, o brasileiro Ilce Gotard dos Santos, que resolveu participar do concurso. O tema, segundo ela, é tão rico que ela levou apenas dois dias para formular toda a história de Iracema e descrever suas angústias e esperanças ao chegar a terra tão sonhada.”Nem acreditei que pudesse ganhar, pensei que o concurso era só para gente graúda”, conta com entusiasmo.
Lúcia lembra que é leitora assídua do jornal AcheiUSA e não cansa de parabenizar a iniciativa do concurso que, para ela, é também uma maneira de provar que os brasileiros estão em alta em solo americano. “Isso incentiva os brasileiros que moram aqui”, resume a brasileira que trabalha fazendo traduções em três línguas: inglês, português e espanhol.

Ela garante que seu primeiro ano nos Estados Unidos, ela mudou-se em dezembro de 2011, está sendo maravilhoso e que está surpresa e otimista com a forte presença da cultura brasileira entre os americanos da Flórida. “Aonde eu chego vou logo falando que sou brasileira e as pessoas me tratam ainda melhor. Com certeza isso é fruto do trabalho árduo que outros compatriotas já fizeram por aqui em divulgar nosso país, nosso idioma e nossa cultura”, conta.


3º LUGAR

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