Histórico

Artigo: Depressão feminina: a greve interna

Todo dia ela faz tudo
sempre igual,
Me sacode às seis horas da manhã,
Me sorri um sorriso pontual…
Cotidiano

Chico Buarque/1971

E. deixou um dos países da América Central com o marido para vir aos EUA. Eles tinham uma filhinha que E. havia criado praticamente sozinha, uma vez que o marido vivia trabalhando em outro países. Durante alguns anos moraram com a família dele em New Jersey, no frio de um país estrangeiro, fazendo sacrifícios. Enquanto ele estudava para se tornar médico, terminando o currículo já iniciado em sua terra natal, ela cuidava da filha e poucos anos depois engravidou do segundo filho. A conheci quando já moravam em Boca Raton, sua menina agora de 12 anos, era uma garota interessante, físico de esportista, e sem mimos.

Em seu país, E. era professora colegial. Disse-me que prezava muito a educação e, para garantir às crianças boas escolas, haviam escolhido onde morar, mesmo o marido tendo que dirigir uma hora para chegar ao trabalho. Ela tinha um emprego de meio período como auxiliar de professora num maternal; havia recusado mais de uma vez o cargo de professora efetiva porque “era muita responsabilidade”. Contava-me, na pressa dos nossos encontros entre uma atividade e outra das crianças, que hoje em dia poderia parar de trabalhar, o marido ganhava o suficiente, mas ela preferia não ter que ficar só em casa. Suavemente queixava-se de passar muito tempo na cozinha, seus filhos e marido “não estavam acostumados a comer comida que não fosse fresca”. E, com um sorriso, corria até o carro.

Um dia minha filha foi brincar na casa dela. Ao buscá-la, a encontrei muito animada no quarto da amiga. Notei que elas conseguiam se divertir a despeito da interferência insistente e barulhenta do irmão de 5 anos que se intrometia física e verbalmente. Minha filha, um metro e meio de criança, de vez em quando, escondia-se atrás da cama, protegendo a cabeça com as mão, dos objetos que ele lançava, ao mesmo tempo em que tenacemente mantinha de pé o papo com a amiga. Olhei perplexa.

E. levou-me para a sala, conversando; o menino nos seguiu resmungando alto, insatisfeito e agitado. Fiquei impressionada. Gosto muito de crianças e sempre me preocupo em checar se elas estão bem, pronta para entender o problema que as aflige, que nem sempre os pais percebem. Mas ele me olhou feio. Grudava fisicamente na mãe, dando-me as costas, declarando com o corpo sua posse. E., sorrindo sem graça, dizia que ele era “terrível”, que agora estava até “um pouco melhor” porque havia aceito uma das amigas da irmã após ela ter ido lá algumas vezes.

Levantou-se do sofá onde estávamos para me mostrar o problema do computador por causa do qual ela não pôde terminar as traduções que havia se comprometido a fazer para um de meus cursos. Vi que ela não tinha familiaridade com o pc. O menino atrás de nós, clamando alto, fazendo barulho e puxando-a. Estávamos no quarto dela. Olhei-me em volta e notei aparelhos de ginástica. Ela respondeu que o marido fazia exerícios regularmente, além de correr pelo quarteirão. Interessante, eu pensei, apesar de trabalhar o dia todo e gastar um tempão no carro ele consegue fazer seus exercícios. Como mãe eu mesma sei o quanto isso é difícil. Os gritos do menino ecoavam à minha volta, ele era realmente insuportável e a expressão dele não deixava dúvidas de que estava abusando impunemente de seu poder.

Terminei minha visita na cozinha, onde E. me mostrou os preparativos para o jantar, e como ela consegue se organizar para tornar tudo o mais prático possível. Finalmente, eu e minha filha nos despedimos. Poucas semanas depois a encontrei pela rua com o filho. Olhei direto nos olhos do menino, indagando qual seria a dele, recebi de volta um olhar duro e desafiador. A tentativa de conversa com a mãe durou menos de 60 segundos. Ele a puxou pelo braço e ela, dócil, despediu-se.

Nunca mais encontrei E. Num domingo de manhã, meses depois, nos cruzamos no supermercado. Ao me ver, ela pára, sorri um pouco sem graça. Nessa altura, eu já tinha certeza de que ela estava com problemas. Nas poucas ocasiões nas quais a vi de longe, durante aquele tempo, percebi que queria isolar-se. E respeitei. Desta vez ela se aproximou. Desculpou-se por ter sumido, não cumpriu o compromisso comigo, mas, explicou, “estive muito doente”. O que aconteceu? Perguntei. “Passei muito tempo de cama”. “Por que?” “Fui diagnosticada ‘maníaco-depressiva’”.

Aconteceu dela cair de cama, sem conseguir se levantar. Passou mal, chorou, ficou apática, parada. Exausta. Deu um tempo no trabalho. Seu marido levou-a a um colega que emitiu o diagnóstico e receitou-lhe remédios para o caso. Agora estava melhor, mas não totalmente recuperada.

Eu, que desconfio de diagnósticos-padrões e remédios fáceis, me dispûs a ouvi-la e fiz algumas perguntas. Ela me conta algumas coisas e fica evidente que o diagnóstico está furado. Ela admite que, de fato, seus sintomas não se enquadram no padrão maníaco-depressivo: “Eles dão esse diagnóstico para todo mundo hoje em dia…!”

Olhei para ela e vi uma mulher inteligente, profundamente infeliz e insatisfeita com sua vida. Aprisionada, paralisada, dependente. Não consegue sair do trilho. Talvez acredite não haver outro caminho. Precisa de ajuda, mas não procura aquela verdadeira. Remédios “sossega-leão” servem para não questionar a vida, permanecendo na mesma situação que originou o mal estar. Converso com ela, de mulher para mulher e não só de psicoterapeuta para cliente. Simpatizo com sua condição, quero ajudá-la, a incentivo, digo que ela tem forças e precisa confiar em si mesma. Não são remédios que vão “curá-la”, porque a “doença” é a vida que está torta e somente ela pode endireitá-la. De fato, gosto da E. Sei de várias mulheres de valor sofrendo caladas, tomando remédios e chorando às escondidas, carregando a vida como uma cruz necessária, com vergonha de não estarem feliz “como deveriam”.

Ela me agradece de coração. Nos despedimos, “Vou te procurar”, ela diz. Mas, como a avisei, até para conseguir a ajuda certa, é preciso vencer uma resistência interior e que muita vez começa em casa. O marido, clínico geral alopata, não teve olho clínico para diagnosticar um mal da alma, assim como levou o filho mimado e tirânico para o pediatra, encaminhou a mulher para um colega. Médicos cuidam de corpos, não de almas. Tristeza, depressão, raiva e agressividade são movimentos da psíque, não transtornos do corpo.

O comportamento do filho de 5 anos agora faz sentido. Não estará ele somatizando e expressando a revolta negada da mãe? A tensão invisível da família? Pois um lar onde a mulher está insatisfeita não pode ser um lar feliz. Quanta raiva não se esconde por trás do sorriso compreensivo, generoso e prestativo de E.? Quando compreenderão as mulheres que não é possível fazer o bem de quem amamos se não estivermos de bem conosco mesmas?

É preciso de coragem e, antes, de vencer o mantra hipnotizador que nos repete que somos fracas, incapazes e incompetentes.

Adriana Tanese Nogueira é psicóloga

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