Histórico

ESPECIAL: Ayrton do Brasil: 50 anos

Por Ialdo Belo*

Na madrugada de 21 de março de 1960 a grande expectativa do povo brasileiro era de que dali a exatamente um mês o país teria uma nova capital. Cumprindo sua promessa de campanha, o presidente Juscelino inauguraria Brasília, marco maior do seu governo modernista que prometia um desenvolvimento de “Cinqüenta anos em cinco.” De fato, vivia-se uma época de otimismo.

Dois anos antes, o Brasil vencera sua primeira Copa do Mundo de futebol. Na área cultural a Bossa Nova se consolidava, renovando o modo de cantar. As artes cênicas brincavam com uma televisão que ainda engatinhava, enquanto monstros sagrados como Cacilda Becker, Tônia Carrero e Paulo Autran dominavam os palcos com apresentações magistrais. Erico Veríssimo, Jorge Amado, Mário Quintana e Carlos Drummond de Andrade contavam nossas histórias em prosa e verso, enquanto Portinari e Di Cavalcanti as ilustravam. No mundo, a corrida espacial fazia com que milhões de pessoas imaginassem o inimaginável: a conquista do espaço sideral pelo homem. Os EUA tinham seu mais jovem presidente e uma primeira-dama que esbanjava glamour. A Europa estava em paz após duas sangrentas guerras e o mapa-múndi estava sendo redesenhado com o surgimento de novas nações independentes.

O mesmo presidente JK também havia traçado as diretrizes que culminariam com a criação da indústria automobilística nacional. E este fato por si só permitiria na década de 60 o incremento das corridas de automóveis, a construção de novos autódromos, o surgimento de ídolos como Emerson e Wilson Fittipaldi, Luís Pereira Bueno, José Carlos Pace e tantos outros.

Sim, era uma época de otimismo e desenvolvimento!

E foi nesse cenário que às duas horas e trinta e cinco minutos, numa maternidade do bairro paulistano de Santana que Ayrton, filho de Milton e Neide, nasceu.

UMA CRIANÇA NORMAL?

Em princípio, tudo indicava que o menino de cabelos castanhos, olhos grandes e orelhas acentuadas seria especial apenas para a sua família. Nada de excepcional ocorreu durante a transição de bebê para criança exceto um fato, aparentemente sem importância, mas que no futuro faria uma diferença enorme na profissão que ele iria exercer: Ayrton era canhoto. Como era de hábito nas escolas da época, até tentaram torná-lo destro. De fato, nas clássicas fotos posadas, com bandeira ao fundo e nome do colégio sobre a mesa, vê-se Ayrton segurando a caneta com a mão direita, inútil tentativa de mudar um dos seus traços já então marcantes: sua determinação.

Mas foi ainda na primeira infância que Ayrton deu os primeiros lampejos de quem viria a se tornar. Ao ganhar um jipinho Bandeirante, carrinho movido a pedal que contava com buzina, faróis que acendiam e cuja pintura militar poderia ter revelado um soldado, o menino de então mostrou que de bélico não tinha nada. Ele queria mesmo era poder pedalar o brinquedo na maior velocidade possível. Ali tinha início a paixão de toda uma vida.

Quando Ayrton completou quatro anos, Milton decidiu que era hora de dar uma “acelerada” nos anseios do filho: retirou o motor de um cortador de grama movido a gasolina e a partir dele passou seis meses construindo o “007”, um rústico kart que atingia incríveis 60 Km/h.
Tal e qual James Bond, Ayrton obtinha sua licença para matar… o tempo.

E ele o fez com tanta maestria que aos sete anos já ganhava seu primeiro kart profissional, dando início a uma carreira que colocaria seu nome entre os maiores de todos os tempos. Como piloto. Como homem.

A MÃO ESQUERDA DE DEUS

Na Copa do Mundo de 1986, Diego Maradona ajudou a seleção argentina de futebol a derrotar a Inglaterra usando a sua mão para fazer um gol. Maradona, irreverente, então declarou que havia sido “A mão de Deus” que fizera o gol.

De uma forma muito mais honesta, Ayrton usou sua mão esquerda para vencer no kartismo ao descobrir que graças ao fato de ser canhoto podia liberar sua mão direita para “bombear” o carburador do seu kart ganhando mais potência. Com a mão esquerda dominante, o controle da direção era exercido com firmeza permitindo a manobra impossível para os destros. Era sua genialidade dando os primeiros sinais. Mais tarde, já na F1, Ayrton também soube se aproveitar do fato numa época em que as marchas eram trocadas com a mão direita através de uma alavanca de câmbio, como nos carros convencionais. Com a mão boa no volante, Ayrton trocava as marchas mais rapidamente, o que lhe rendia importantíssimos milésimos de segundo.

Mas é claro que se o fato de ser canhoto e a descoberta de como tirar vantagem disso de certa forma o ajudaram, o fato por si só está longe de ser o responsável por suas fantásticas conquistas. O que valeu na verdade foi uma incrível capacidade de concentração, uma busca incansável por seus objetivos, uma incomensurável vontade de vencer, uma dedicação quase, apenas quase, total ao trabalho. O “quase” fica por conta dos momentos que dedicava à família sempre que podia. Era nesses momentos que o homem Ayrton se destacava.
Voando de volta para casa após as provas para comer o arroz com feijão preparado pela mãe Neide; para brincar com os sobrinhos Bruno, Bianca e Paula; para descontrair com o irmão Leonardo e o primo Fábio; para confidenciar com a melhor amiga Viviane, sua irmã mais velha.

UMA ESCOLHA DIFÍCIL

Ayrton como kartista venceu tudo o que podia no Brasil e o caminho natural seria o automobilismo europeu. O pai Milton era contra, queria que o filho assumisse os negócios da família. Fizeram então um acordo: Ayrton passaria um tempo na Europa e depois retornaria. Assunto resolvido, Ayrton decidiu que seria mais fácil suportar a difícil jornada bem acompanhado e assim se casou com Lilian Vasconcellos, embarcando para uma nova vida.

Na Europa, entretanto, logo ficou claro que para vencer Ayrton teria que se dedicar de uma maneira tal que seria impossível conciliar duas novidades: a vida de casado e toda a dureza das competições. Assim o casamento do jovem casal acabou. Talvez se fossem mais maduros poderiam ter conciliado a situação, mas o fato é que tanto Ayrton quanto Lilian mantiveram o respeito um pelo outro sendo ele ciente de que ela tinha uma nova vida e que merecia ter sua privacidade respeitada.

No fim do período estabelecido entre Ayrton e Milton para a jornada européia uma contradição: de acordo com o combinado era hora de voltar, mas como se Ayrton fizera uma carreira tão espetacular, conquistando feitos inéditos, quebrando recordes sobre recordes? Natural que o acordo fosse revisto! Mas novamente o caráter de Ayrton se manifestou e resignadamente ele fez as malas e voltou. Um homem de verdade não pode quebrar sua palavra, não importa quais as circunstâncias.

A ALEGRIA PERDIDA

Se alguém se der ao trabalho de imaginar Ayrton trabalhando sentado atrás de uma escrivaninha ao invés de um cockpit de um fórmula… Difícil, não é? Imagine para ele então… Ayrton chegou às beiras da depressão. Estava claro que seu lugar era nas pistas, mas nada o faria quebrar o acordo com o pai. Assim, desconsoladamente, foi se dedicando aos afazeres com a competência de sempre, mas com o coração pra lá de partido. Não demorou muito para Milton perceber a verdade e neste momento entrou em ação uma das pessoas mais queridas por Ayrton, aquele que poderia ser considerado seu segundo pai, seu empresário Armando Botelho, cuja vida foi encurtada por um câncer. O competente Armando botou o trem de volta nos trilhos. Elaborou um projeto que levou Ayrton não só de volta ao automobilismo, mas também à tão sonhada F1. Antes, porém, outro feito inédito só conseguido por Ayrton e jamais repetido por nenhum outro após ele: a transmissão ao vivo pela Rede Globo de uma etapa da Formula 3 inglesa. Era a constatação pública do que todos dentro do mundo do automobilismo já sabiam: o Brasil tinha produzido mais um futuro campeão mundial da F1. O que ainda não sabiam é que este seria o maior de todos.

VITÓRIA OU VITÓRIA

A revista inglesa Autosport, a bíblia do automobilismo mundial, realizou em 2009 uma pesquisa com mais de duzentos pilotos de F1 de todos os tempos. Votaram lendas como Stirling Moss, Jackie Stewart, Emerson Fittipaldi, Lewis Hamilton e tantos outros. A pergunta era simples: qual foi o maior piloto da História? Seria fácil pensar em Michael Schumacher com seus até aqui sete títulos mundiais e suas mais de noventa vitórias. Entretanto, Ayrton venceu disparado. Pesaram não só as frias estatísticas, mas o talento, as condições em que as conquistas foram realizadas, os opositores, o caráter.

Ayrton sem dúvida alguma foi o primeiro dos pilotos “profissionais”. Explica-se: antes de Ayrton a F1 era revestida de certa aura romântica, seus pilotos ganhavam dinheiro, mas a maioria o torrava com belas mulheres e festas. François Cevèrt, James Hunt e Cris Amon tinham em comum além do talento a fama de “playboys”.

Ayrton encarou a F1 como um desafio aonde só a vitória importava. Ser vitorioso para ele deveria ser a meta de todos os brasileiros e esta era a mensagem que ele queria, e conseguiu transmitir.

Ayrton não aceitava a derrota porque o Brasil não aceita os derrotados.

Todos se lembram da seleção de futebol de 1970, mas ninguém tece um elogio sequer aos vice-campeões de 1950. Para os brasileiros o segundo lugar é o primeiro dos derrotados e quando Ayrton empunhava a bandeira verde e amarela a cada conquista, o Brasil vencia junto com ele.

Ayrton buscou a perfeição de uma forma prática. Primeiro iniciou um intenso trabalho de condicionamento físico, o que lhe permitia manter-se concentrado por toda a prova; depois buscou na fé a superação dos limites do homem e por fim estudava cada detalhe da mecânica do carro e como adaptá-lo a pista em que estava. Assim, quando saía dos boxes para uma volta rápida, o show era certo. Quando a chuva desabava inclemente sobre os circuitos, era Ayrton quem surgia de dentro das nuvens de água conduzindo a máquina de uma maneira tal que para os desavisados beirava a insanidade. Nada mais longe disso: era pura genialidade.

UM CAVALHEIRO

Ayrton teve as mais belas mulheres do mundo, mas jamais fez alarde sobre isso. Assim como nas pistas, era um cavalheiro fora delas também. Alguns dos seus namoros foram tornados públicos por culpa da imprensa que o assediava, jamais por sua vontade.
Declarou publicamente que o grande amor da sua vida fora a apresentadora Xuxa Meneghel e isso foi o máximo a que se permitiu.
Nunca falou bravatas porque não é assim que um homem de verdade age.

Na F1 teve poucos amigos. Maurício Gugelmin, Thierry Boutsen e por último Gerhard Berger. Entretanto, longe de ser sisudo, aprontava travessuras especialmente com Berger, que as devolvia em maior ou menor grau. Mas sempre devolvia…

É claro que sempre existirão àqueles que se lembrarão do Ayrton que soltou o verbo em cima do então presidente da FISA Jean-Marie Ballestre e outros desafetos. Mas vale lembrar que ser humano também envolve erros e atitudes impensadas. No final o que vale é para que lado a balança pesa e Ayrton acertou muito mais do que errou.

Sendo o homem que amava a família acima de tudo, é certo que teria se casado após encerrar a carreira nas pistas, dedicando sua atenção a uma esposa e aos filhos.

UMA LIÇÃO DE VIDA

As lições que Ayrton Senna da Silva nos deixou são ricas em significados. Delas podemos aprender um pouco. Melhor ainda será se as aplicarmos nas nossas próprias vidas:
a) Orgulho de ser brasileiro: para quem vive no exterior especialmente, honrar nosso país deve ser visto como uma obrigação. O Brasil é seu povo! Seguirmos o exemplo de humildade, educação, cavalheirismo e patriotismo de Ayrton é a melhor forma de honrar a sua memória e mantê-la viva;
b) Fazer bem feito: não importa o que façamos se somos serventes ou doutores, querer ser o melhor nos traz satisfação pessoal, orgulha nossa família e nossos amigos. Jamais usar a soberba. Guarde seu reconhecimento para você e deixe que os outros o percebam e lhe valorizem por isso.
c) Tenha controle sobre sua imagem: seja ela pública ou não, seja famoso ou anônimo, procure transmitir sempre o seu lado positivo;
d) Ajude ao próximo sem pensar em recompensas: a maioria das doações feitas por Ayrton em vida foram anônimas.
e) Mantenha sua fé: independente no que você acredite ter fé é ter poder.

LEGADO
Em março de 1994 Ayrton conversou com a irmã Viviane sobre o desejo de ajudar ainda mais as crianças brasileiras. Deste desejo surgiu em novembro do mesmo ano o Instituto Ayrton Senna, instituição sem fins lucrativos que reverte toda a renda obtida com a utilização da imagem de Ayrton em projetos beneficentes.

Nas pistas o sobrenome Senna está de volta desde o dia 14 de março deste ano através do sobrinho Bruno.

Ayrton completaria 50 anos às 2 horas e 35 minutos do dia 21 de março de 2010.

*Agradecimentos especiais à Claudine Scharlé

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