Histórico

Governador Valadares, a América presente em cada canto de uma cidade brasileira

O AcheiUSA resolveu mergulhar na história do fluxo migratório de brasileiros vindos de Minas Gerais, especialmente da região de Governador Valadares, e apresenta nesta e nas próximas edições uma série de reportagens exclusivas sobre o assunto. A repórter Ana Paula Franco foi até a cidade conversar com moradores, especialistas e pessoas que viveram nos Estados Unidos para entender melhor a realidade desses emigrantes que fizeram o caminho de volta para o Brasil. Descobrimos como estão agora, como é o processo de readaptação e se eles querem voltar para a América. A série de três reportagens começa com uma entrevista com a professora Sueli Siqueira, especialista em emigração da Univale.

Por Ana Paula Franco
Direto de Governador Valadares
Fotos de Alexandrina Santanna

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Parte I – Professora explica evolução e atual situação do processo migratório entre Brasil e EUA

Governador Valadares, cidade de 265 mil habitantes, localizada ao pé do Pico do Ibituruna, no leste de Minas Gerais, é mundialmente conhecida por “exportar” seus moradores para os Estados Unidos. Milhares e milhares de emigrantes ao longo das últimas décadas deixaram Governador Valadares e as cidades do seu entorno para encontrarem a “terra prometida” na América. Com a crise de 2008, um grande número de mineiros retornou à terra natal e muitos deles tiveram sonhos interrompidos. Retornaram carregando na mala a frustração de não terem voltado com o tão sonhado pé de meia e em situação financeira pior do que quando foram.

Para entender um pouco mais sobre esse processo migratório na região leste de Minas, o AcheiUSA entrevistou a especialista e professora Sueli Siqueira, da Univale, que estuda e acompanha há mais de 30 anos os fenômenos da migração brasileira. Jornalistas e pesquisadores de várias partes do mundo já estiveram em Valadares para entrevistar a professora, que fez pós-doutorado em Portugal e é autora, entre outras publicações, dos livros “Migrantes e Empreendedorismo na Microrregião de Governador Valadares” e “Sonhos, Sucesso e Frustrações na Emigração de Retorno”.

Sueli Siqueira (UNIVALE)AcheiUSA- Por que há tantos imigrantes de Valadares nos Estados Unidos?
Sueli Siqueira – Os primeiros migrantes brasileiros saíram de Governador Valadares na década de 60, mais especificamente em 1964. Antes disso, na década de 40, chegaram dezenas de americanos para trabalharem nas obras da linha férrea Vitória-Minas. Era época da Segunda Guerra Mundial e a demanda de ferro era grande. A companhia que veio para expansão da estrada de ferro trouxe um grupo de engenheiros americanos para a cidade e, com eles, todo o deslumbramento da cultura norte-americana. Eles criaram bairros inteiros com características americanas e esse foi um período de grande desenvolvimento da região. No imaginário popular ficou a ideia de que a presença desses americanos está relacionada a esse desenvolvimento.
Terminado o período de obras, um dos engenheiros americanos, Mr. Simpson, ao contrário da maioria, resolveu ficar com sua esposa em Governador Valadares e por aqui montaram uma escola de inglês que começou a mandar os alunos, filhos de famílias de elite, para os Estados Unidos.
O primeiro estudante que voltou teve sua ida e estada muito divulgada, mandou cartas, a mídia retratou, e a imaginação da população já estava aguçada. Quando ele retornou, na década de 60, o panorama econômico é de decadência na cidade. O panorama é que a elite estava perdendo a sua posição econômica. Os primeiros emigrantes são jovens dessa elite e os primeiros foram em 1964. Chegando lá, percebem a oportunidade de trabalho e trouxeram essa informação. Eles trazem essas informações de como fazer isso e daí tem início o processo emigratório na cidade.

AU – O auge da emigração de valadarenses para os Estados Unidos foi na década de 80. Como foi essa evolução?
SS – Como eu já disse, os primeiros moradores se mudaram para os Estados Unidos na década de 60. Eles avisaram que por lá havia boas oportunidades de trabalho e foram levando familiares e amigos. Isso nas décadas de 60 e 70.
Na década de 80, a economia brasileira entra em declínio e enquanto em cidades de porte médio do Brasil as pessoas migram para os grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro e São Paulo, em Governador Valadares era mais fácil ir para Nova York. Muitos não conheciam nem a capital do Estado, Belo Horizonte, mas preferiam ir para Nova York, onde um conhecido o esperaria no aeroporto. Na região de Nova York, eles trabalhavam em hotéis nas montanhas e a partir daí muitos, por meio dos hotéis, vão para a Flórida, onde se estabelecem em função do clima local e por se identificarem mais com a cultura.
Nessas regiões onde os brasileiros moram você tem comunidades inteiras que foram modificadas. Tem bairros em que você percebe as mudanças, a estrutura, as pessoas que andam nas ruas, a modelagem nas casas. Eles mudam o território para onde vão.

AU – E o que esses migrantes saem à procura? Por que você vê pessoas arriscando a vida, deixando para trás a família?
SS – Eles vão fundamentalmente para ganhar dinheiro. Os primeiros foram com visto de trabalho. Na década de 80, como o número de interessados em viajar para os EUA era muito maior que a oferta de vistos, surgem as outras maneiras ilegais de se entrar no país.
Você tem o que nós chamamos de cultura da emigração. Essa ideia de que eu resolvo meus problemas indo para um outro lugar. Fica na consciência coletiva a ideia de que é fácil, não é difícil, mesmo que seja pela fronteira. Lá eu vou conseguir, vou encontrar a terra prometida.
Na época, havia a falsificação de passaporte – agora não dá para fazer isso mais -, ofereciam dinheiro pelo passaporte. Havia toda uma estratégia para fazer isso. Você tem os agenciadores, os chamados “cônsules”, que não aparecem para você, mas que têm todos os contatos. E há os “coiotes”, que não são brasileiros, mas mexicanos, que fazem a travessia. O projeto migratório vai tornando-se muito fácil. Os jovens, antes de irem para a faculdade, já queriam ir para os EUA.
Até o ano 2000, há um fluxo intenso de emigrantes para os EUA. A região Sudeste com a maior fatia e a região de Governador Valadares com o maior percentual por mil habitantes do Brasil. O fluxo inverso acontece depois dos atentados de 11 de Setembro e depois da crise de 2008.

AU – Qual o efeito mais perverso do processo migratório?
SS – Eu gosto muito de dizer uma coisa. O preço mais alto por esse movimento migratório quem paga é o pais de origem. O país que recebe o migrante não gasta um centavo e, se precisar gastar, ele deporta.
O migrante vai no auge da sua força de trabalho, produz riqueza a um custo baixo. Ele não procura médico, só em caso de emergência, porque tem medo.

AU – Quantos documentados vêm fazer o tratamento no Brasil porque nos EUA é muito caro?
SS – Ele chega aqui com problemas de coluna, síndrome do pânico, etc. A cultura da emigração é perversa, porque há uma alta valorização do externo e desvalorização do interno. Acham tudo muito sujo, tudo muito quente, acham as folhas no chão aqui sujeira e as do exterior uma beleza natural. Essa é a cultura da emigração: até o lixo de lá é mais bonito que o daqui, e até o pobre de lá é mais bonito que o nosso.
E aí, quando ele volta, cinco, dez ou quinze anos depois, quer voltar para o lugar e para o tempo de quando saiu. E o pior de tudo é que muitas vezes volta sem falar inglês e sem qualquer qualificação para o mercado de trabalho. Ele percebe que tudo mudou, a mulher, os filhos, a família, a cidade. Aí tem pessoas que não conseguem adaptar-se. É a chamada crise de não se sentir pertencente a nenhum lugar.

AU – Podemos afirmar que as pessoas estão desistindo de ir para os Estados Unidos?
SS – Não, de forma alguma. O processo migratório é mais ou menos intenso, mas nunca cessa. Ele é cíclico, em alguns períodos o número é maior, em outros não, mas sempre presente.


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