Histórico

O inferno é zen!

Roberto Ribeiro*

Desabafo, perdoem, de quem acaba de chegar à cidade. Mas tenho certeza de que os quatro leitores que também utilizam o transporte público de Miami (ônibus urbanos especificamente) me entenderam e concordam comigo. E digo quatro pra me consolar, porque a impressão que tenho é de que aqui NINGUÉM anda de ônibus. Faça a experiência, caro leitor, você que não é um desses quatro condenados, e peça qualquer informação, em qualquer lugar, pra qualquer tipo de pessoa, sobre o itinerário, ou onde, ou qual linha pegar para determinado destino. NINGUÉM sabe nada de nada. “Sorry, I don’t take buses”. Minto, o único ser vivente que poderá te fornecer informação, ainda assim nem sempre totalmente confiável é Mr. Google. (Imagino como seria esse desabafo antes da internet: uma tempestade de bile). Às vezes desconfio que os ônibus e seus pontos na rua, passageiros, motoristas, sejam todos holografias criadas pelo serviço público para prestar contas à comunidade.

Eu sei, calma. O leitor impaciente (recomendo umas voltinhas de coletivo) se pergunta: mas que diabo de “inferno zen é esse”? Explico. Algum dos leitores já foi de Miami Beach a Doral de ônibus? NINGUÉM, claro, já sei!

Fiz essa insanidade duas vezes. Na primeira, saí com mais de duas horas de antecedência e não consegui chegar a tempo. Vexame absoluto: foram me buscar de carro no meio da rua. Já na segunda, prevenido, malandro-agulha**, saí com três horas de antecedência… e não consegui chegar a tempo. Mais, cheguei exatamente com o mesmo tempo de atraso que chegaria (se tivesse chegado) da primeira vez.

Mas sim, o título. Comprovo-o descrevendo ao confidente leitor o que foi a segunda tentativa.

Google: das várias, duas sugestões razoáveis. A primeira, pela ponte da 41, seria utilizar duas linhas que, como já tive o desprazer de verificar, demoram muito a passar, o J e o 36. A segunda opção me pareceu melhor. Um ônibus até Down Town e de lá outro até Doral.
Mas de Miami Beach, se você não quiser perder uma hora pra chegar a Down Town na linha S, correspondente ao que chamamos no Rio de Janeiro de “parador”, você tem que pegar o 120, o expresso, com muito menos paradas. Isso, para mim, significa andar cinco longos quarteirões nesse clima ameno, e sem marquise (ainda dois meses para o verão!). Mas todos têm ar condicionado, disso não se pode reclamar.

A primeira “perna” é mole. O inferno começa aqui. O 7. O 7 chegou em vinte minutos. Para uma pessoa ansiosa como eu, vinte minutos de espera já me faz falar sozinho, praguejar baixinho contra Murphy. (Aos trinta estou vociferando aos céus, gritando meu vasto repertório de xingamentos às gerações passadas e futuras de todos os deuses já criados). Mas convenhamos, vinte minutos é uma espera aceitável para um ser humano padrão. Muito bem, subo no veículo mal sabendo que a senhora volumosa e simpática que está ao volante e me recebe com um sorriso se tornaria a personificação de Caronte, o barqueiro do inferno.

O que cimentou o primeiro tijolo do meu desespero foi perceber, após cinco minutos de trajeto, que existe um ponto a cada 80 metros no itinerário da malfadada linha! Não sei se o dileto leitor tem ideia espacial do isso significa. Significa que, se considerarmos quarteirões de 100 metros de comprimento, o que é mais ou menos o padrão, há um ponto de ônibus a CADA quarteirão, e que, a cada cinco quarteirões, teremos DOIS pontos num mesmo quarteirão! Não sei se o receptivo leitor imagina o que isso significa para um cidadão que há quase vinte anos utiliza o transporte público na Zona Sul do Rio de Janeiro. Lá, se você tiver a sorte de ser atendido quando faz sinal a um ônibus e não for derrubado pela arrancada assassina do motorista, você logo chegará ao seu destino, porque o motorista certamente tentará evitar ao máximo fazer paradas indesejadas nos pontos do seu itinerário.

Mas, de volta a Miami, além da minha incredulidade pela inutilidade da terceira marcha, nenhuma manifestação aparente de impaciência. Os passageiros, virtuais ou não, impávidos; como se o cronômetro da existência estivesse sob seu controle, como se o tempo fosse uma medida relativa.

E pra quem pensa que Caronte trafegava pela pista expressa, costurava, ou acelerava pra atravessar o sinal amarelo, está enganado.
Caronte não meteu a cabeça pela janela uma única vez para praguejar contra qualquer motorista. Caronte, no seu volume possessivo, parecia um Buda uniformizado.

Como poderia dizer Nelson Rodrigues, o óbvio ululante estava sendo ignorado! Estávamos imergindo no primeiro círculo do inferno e NINGUÉM se manifestava! Era como se todos à minha volta fossem cúmplices de uma conspiração passiva. Mas toda unanimidade é burra, e eu estava lá, podendo salvar nossa espécie da estupidez, então… Não, não me manifestei. Engoli a seco a acidez da gastrite e pedi ponto: “Stop requested. Dear passenger, for your safety, please…”, nunca consegui entender o resto. E desci, depois de uma eternidade, a doze quarteirões do meu destino, deixando pra trás Caronte/Buda e seus discípulos.

Enfim, cheguei ao meu destino. Atrasado, suado… envelhecido pela placidez alheia.

**MALANDRO-AGULHA: aquele malandro que só entra em furada, mas não perde a linha.


*Roberto Ribeiro é ator e acabou de se mudar para Miami.

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